quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O ANALISTA DE BAGÉ

OUTRA DO ANALISTA DE BAGÉ

Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé – segundo ele, “mais prestimosa que mãe de noiva” – tem sempre uma chaleira com água quente pronta para o mate. O analista gosta de oferecer chimarrão a seus pacientes e, como ele diz, “charlar passando a cuia, que loucura não tem micróbio”. Um dia entrou um paciente novo no consultório.

- Buenas tchê – saudou o analista. – Se abanque no más.

O moço deitou no divã coberto por um pelego e o analista foi logo lhe alcançando a cuia com erva nova. O moço observou:

- Cuia mais linda.

- Côsa mui especial. Me deu meu primeiro paciente. O coronel Macedônio, lá pras bandas de Lavras.

- A troco de quê? – quis saber o moço, chupando a bomba.

- Pues tava variando, pensando que era metade homem e metade cavalo. Curei o animal.

- Oigalê.

- Ele até que não se importava, pues poupava montaria. A família é que encrencou com a bosta dentro de casa.

- A la putcha.

O moço deu outra chupada. Depois examinou a cuia com mais cuidado.

- Curtida barbaridade.

- Também. Mais usada que pronome oblíquo em conversa de professor.

- Oigatê.

E a todas estas o moço não devolvia a cuia. O analista perguntou:

- Mas o que é que lhe traz aqui, índio velho?

- É esta mania que eu tenho, doutor.

- Pos desembuche.

- Gosto de roubar as coisas.

- Sim.

Era cleptomania. O paciente continuou a falar mas o analista não ouvia mais. Estava de olho na sua cuia.

- Passa – disse o analista.

- Não passa, doutor. Tenho esta mania desde piá.

- Passa a cuia.

- O senhor pode me curar, doutor?

- Primeiro devolve a cuia.

O moço devolveu. Daí para diante, só o analista tomou chimarrão. E cada vez que o paciente estendia o braço para receber a cuia de volta, ganhava um tapa na mão. (VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Analista de Bagé, Porto Alegre : L&MP Editores, 1995, p. 160)

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