sábado, 8 de agosto de 2020

DONA SANCHA

Por José de Souza Martins

Quem não brincou de pegador, de amarelinha com casca de banana, de passar anel com anelzinho de pedra de vidro que vinha preso numa daquelas balas de antigamente? Qual foi o moleque que não jogou fubeca, não bateu figurinha na calçada ou no páteo da escola, ou não rodou pião? Qual foi o moleque que não empinou papagaio feito caprichosamente pela irmã? Qual foi o moleque que não brigou na rua com o amigo de todos os dias, depois de fazer um risco no chão para separar os lados dos contendores e cuspir no lado do outro para provocá-lo e iniciar o confronto, os empurrões e os tabefes? Qual foi o moleque que não apanhou de cinto em casa quando o pai soube que já apanhara de tapa de outro moleque na rua? Ninguém podia voltar para casa vencido. Ou contar que apanhara.

Qual foi a menina que não ficou de mal com a amiga, entrelaçando os dedos das duas mãos, virados para a outra e soltos lentamente para simbolizar a ruptura? Qual foi a menina que não reatou a amizade enlaçando o dedo mindinho com o mindinho da outra para simbolizar o reatamento e dizer assim que o amor de todos os dias entre crianças é maior do que a raiva do instante? Quem não lembra de histórias incrivelmente fantasiosas que as crianças inventavam e contavam, cada vez de um jeito, no teatro imaginário das reuniõezinhas de calçada, no começo da noite, sob a luz amarelada dos postes da Light? A cidade era uma xilogravura.

Os antigos e os não muito antigos já notaram o desaparecimento do lugar da criança na renovação da sociedade e na vida da cidade. A rua já não é da criança, é do carro. Ou é do crime, mesmo que esse pavor seja em grande medida falso, alimentado de propósito pelo rádio e pela TV para aterrorizar adultos e crianças. Já não se fala das coisas boas que acontecem todos os dias nas ruas da cidade: um concerto, um livro, uma poesia no poste. O noticiário homicida, desenraizado e alienado matou a cidade. Já foi o tempo em que o povo sabia das coisas pelo jornal, um de manhã e outro à noite, deixando para o afobado Repórter Esso as notícias de última hora.

Nos bairros, como o da Mooca, do Brás, do Belenzinho, de Santana, da Lapa, do Ipiranga, da Vila Prudente, à noite, os pais punham cadeiras na calçada para conversar com os vizinhos, apreciar o movimento que não havia ou acompanhar com os olhos um carro que passasse, buzinando e espantando crianças.

As crianças brincavam de adivinhas, de o que é que é, de cantigas de roda - Senhora Dona Sancha vestida de ouro e prata; Pirulito que bate, bate, pirulito que já bateu, quem gosta de mim é ela, quem gosta dela sou eu; O cravo brigou co'a rosa debaixo de uma sacada; Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas de diamante para o meu amor passar. Crianças, venham pra dentro, está na hora, já é tarde. São oito horas!

Fonte: O Estado de S. Paulo

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