Jaime Pinsky*
… Estamos apostando muito alto, e é possível que venhamos a ter grandes desilusões. Lidar com a realidade é sempre difícil, particularmente neste momento, em que nos sentimos fragilizados. Idealizar o futuro é uma forma de manter a sanidade, mas construir castelos de areia pode ser mais perigoso ainda para nossa saúde mental…
Mesmo tendo efeitos devastadores, a humanidade não acredita que a Covid-19 decretará o fim do mundo. Tanto é que já começamos a especular sobre o que vai mudar no “day after”, assim que nos livrarmos da pandemia.
Geralmente, não sou de arriscar previsões: nós, os historiadores, no máximo tentamos adivinhar o que já aconteceu. E mesmo sobre isso temos opiniões diferentes… Mas, sobre o “dia seguinte” talvez seja importante refletir. Estamos apostando muito alto, e é possível que venhamos a ter grandes desilusões. Lidar com a realidade é sempre difícil, particularmente neste momento, em que nos sentimos fragilizados. Idealizar o futuro é uma forma de manter a sanidade, mas construir castelos de areia pode ser mais perigoso ainda para nossa saúde mental.
O tal “dia seguinte” só vai acontecer se e quando tivermos um remédio confiável ou a vacina. Atrás dela correm dezenas de laboratórios, em muitos países, de ingleses a russos, de americanos a chineses. Segundo especialistas, as vacinas serão muito diferentes, desde aquelas produzidas de forma mais tradicional, como a chinesa feita em parceria com o Instituto Butantan, até outras com tecnologia mais sofisticada, como a inglesa, passando pela israelense, que promete ser oral e não injetável. Mas elas não existem ainda, embora cientistas e médicos com muita credibilidade achem que as vacinas estarão prontas para serem aplicadas pouco antes do carnaval (o que, do ponto de vista mercadológico, seria algo glorioso e oportuno).
De uma forma ou de outra, parece que o tal dia seguinte só acontecerá no próximo ano. Até lá teremos que conviver com o medo da contaminação. Vamos continuar olhar com desconfiança para qualquer um que cruzar conosco sem máscara, vamos temer aquele resfriado e aquela dor de garganta. Um simples espirro nos fará correr atrás do termômetro para aferir a febre. Continuaremos com o novo hábito de cheirar a comida para conferir se não perdemos o olfato, e degustá-la lentamente para estarmos seguros de que continuamos sentindo o gosto das coisas. Os que têm o que temer, esses talvez estejam, agora mesmo, checando os arquivos, rasgando e queimando documentos e fotos, destruindo pendrives, atirando antigos celulares no mar e apagando memórias dos computadores. Afinal, mesmo mortos, eles não querem correr o risco de ter situações e relações impróprias devassadas.
Sim, mas e o “day after”? Temo desapontar o leitor: não acontecerá nada. Nadinha. Necas. Na melhor das hipóteses, talvez no dia seguinte àquele em que toda a humanidade seja vacinada, em que a poção milagrosa produzida pelos cientistas seja injetada no braço de sete e tanto bilhões de habitantes deste planeta erradio, talvez nesse dia e nos seguintes a humanidade seja diferente do que é hoje. Talvez nesses dias (vá lá, uma semana) nós nos sintamos irmanados aos coreanos (até aos do norte), aos esquimós, aos bosquímanos, a todos os negros e aos brancos, aos homens e às mulheres, aos ricos e aos pobres do mundo todo. Talvez nesses dias a gente se sinta como se tivesse escapado, junto com todos os demais habitantes do Planeta, de um perigo imenso, de um risco sem tamanho, perigo de destruição total. Talvez esse sentimento nos irmane, nos faça perceber que estamos juntos, queiramos ou não, que temos de cuidar deste ponto perdido do Universo, que, afinal de contas, é nossa casa, limpá-lo, preservá-lo, mantê-lo saudável, pelo menos no que depender de nós. Pode ser (apenas pode ser, não sei ao certo) que, durante uma semana a gente perceba que é ridículo, idiota e primário viver cutucando um ao outro, ameaçando o vizinho, destruindo sua casa, invadindo sua horta, matando seu cão, sua mulher, seus filhos, jogando sal na terra em volta da casa dele para que nunca mais cresça planta alguma em suas terras.
Talvez a gente, durante essa semana, perceba no coração um estranho e inusitado sentimento de fraternidade, uma emoção rara (e até gostosa), mas muito ameaçadora, pois nos coloca distantes de nossas armas e de nossos escudos. Essa emoção nos fragiliza, pois não pede por armas e violência, mas por solidariedade e conforto. Essa emoção nos ameaça porque não sabemos abraçar de verdade, nem acreditar no próximo, nem dividir o que temos, mesmo que esteja sobrando.
Mas, se tudo correr bem, esse sentimento durará, no máximo, uma semana. Depois voltaremos a ser como sempre, a ser nós mesmos. E nos esqueceremos de tudo o que passamos. E a normalidade pairará novamente sobre a Terra.
*JAIME PINSKY: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto. Autor de vários livros sobre preconceito, cidadania e escravidão.
Fonte: http://www.chumbogordo.com.br
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