O DESEMBARGADOR QUE RASGA MULTA É COMO VOCÊ E EU
Por Marcelo Dias
Preparem a pipoca: nos próximos dias o esporte nacional brasileiro vai ser esculhambar o desembargador Eduardo Siqueira, aquele que ofendeu guardas municipais de Santos. Se vendesse camisetas com a frase “100% contra o Siqueira” eu ficaria rico. E está todo mundo certo em se revoltar com o sujeito, já que ele ultrapassou todos os limites da petulância. Tô com vocês. Se for ele penalizado, quero soltar rojões, como se fosse um gol da justiça social. Vai Brasil-sil-sil!
Só tem um problema: todos nós somos um Siqueira em potencial. Vai ver é porque somos um país que, além de absurdamente desigual, também é moralmente falido. Como nação não temos muito do que nos gabar. Então esnobar tornou-se uma necessidade individual para alimentar a nossa autoestima. Toda e qualquer chance de subir nas tamancas e ficar alguns centímetros acima dos outros acaba sendo aproveitada.
Eu vejo exemplos quase diários disso. É só prestar atenção no motorista de ônibus. Ele é xingado por todos, do playboy do carrão à faxineira que dorme no banco da frente. Uma freada fora de hora e todos exibem sua posição na pirâmide social: o motorista é tratado como serviçal do senhor e senhora “Eu pago os meus impostos”.
Balconistas? São tratados como “dalits” de nosso sistema de castas. Já vi um marmanjo de cabelos brancos dar chilique com o atendente de uma bomboniere de cinema, só porque o rapaz se recusou a carregar os sacos de pipoca do sultão. O rapaz tentou, em vão, explicar: ele não podia abandonar o caixa. O sultão saiu bufando com cara de “como ousa?” Garçons? Já vi cliente jogando prato no chão de raiva. Vendedor de celular? Palavrão e dedo no rosto.
Não estou exagerando. Se todos nós fôssemos acompanhados por câmeras, o Datena ficaria 24 horas no ar berrando “imagens, eu quero imagens!”. E, não, não é só coisa de reaça ou de elite. É geral. Parece estar no sangue de qualquer brasileiro. Do barbudinho hipster de coque à sua vizinha de lenço na cabeça. Esnobar é coisa nossa.
Você duvida? Há alguns anos eu fiz uma reportagem em uma comunidade da Zona Leste de São Paulo. Um terreno invadido que foi aos poucos se legalizando e se urbanizando, mas de forma desigual. Os próprios moradores me contaram como é a “divisão de classes” do local. Próximo a uma avenida, em uma faixa mais urbanizada e com casas de alvenaria, ficam “os da frente”. E que esnobam “os do fundo”, que moram em casebres de madeira a beira de um córrego. É pobre esnobando miserável.
E eu devo ter vários exemplos meus, também. São ridículos, mas eu os escondo sob camadas profundas de vergonha. Só conto para minha analista. E você também deve ter os seus. Não precisa me dizer. Eu te entendo: é um vício jeca nosso. E quando dá, a gente esconde.
Por isso, sim, o desembargador merece punição. Mas é bom assumirmos que ele é apenas um bode expiatório, uma espécie de “grande réu branco” que queremos ver exposto apenas para redimir nossa própria arrogância.
Quanto mais cedo combatermos o Siqueira que há em nós, mais cedo temos a chance de ter um país de verdade nas mãos.
Fonte: https://www.revistabula.com
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