quarta-feira, 8 de julho de 2020

O ANALISTA DE BAGÉ

Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé (segundo ele “uma recepcionista eclética, pois recebe e dá”) faz o possível para prevení-lo sobre os pacientes novos antes de entrarem no consultório pois, como diz o analista, “se me entra um arreganhado já recebo a tapa. Lindaura deixa um pedacinho de veludo vermelho ao alcance do paciente na sala de espera. Depois escreve na sua ficha “Não ligou para o veludo” ou “Passou a mão e começou a babar” ou “Botou na frente e foi ver no espelho se ficava bem”. Na ficha daquele cliente novo, de Não-me-Toque, ela escrevera: “Viu o pedacinho de veludo e recuou horrorizado”. Era obviamente paranóico. 

- Te deita no divã, tchê – disse o analista de Bagé. 

- Prá que? – quis saber o paciente, desconfiado. 

- Oigalê bicho bem chucro – disse o analista com uma risada agradável, enquanto torcia o braço do outro e obrigava-o a se deitar. 

O paciente ficou se segurando sobre o pelego que cobria o divã, para evitar que arrancassem sua roupa. O analista sentou no seu banquinho e pegou a cuia. Ofereceu: 

- Um mate? 

- O que você quer dizer com isso? 

O analista de Bagé passou a cuia para o outro, que olhou para a ponta da bomba com apreensão. 

- Pode tomar que os micróbios são de casa – disse o analista, mas o paciente devolveu a cuia. O analista continuou: 

- Pues, qual é o problema? 

- Eu sabia. Já andaram espalhando que eu tenho problema. 

- Se o amigo está aqui é porque tem um problema. Já vi que mate não é. 

- Pare com esse tom condescendente! 

O analista de Bagé fez força para se controlar. Um dia antes perdera a paciência e atirara um masoquista contra a parede. O masoquista não reclamara mas com o impacto se quebrara o seu Freud entalhado em imbuia. O outro continuou: 

- Todo mundo me persegue. 

- Não é verdade. 

- Ninguém acredita em mim. 

- Eu acredito. 

- Você só diz isso pra me agradar. 

- Eu não estou querendo te agradar. 

- Por que não? Por que não? 

Meia hora depois o analista de Bagé, com argumentos razoáveis, e com a ameaça de atirar a escarradeira na sua cabeça, convencera o paciente a abandonar sua mania de perseguição. Ninguém o estava perseguindo. Era pura fantasia. 

- E o jacaré embaixo da cama? 

- Não tem jacaré. Jacaré gosta de banhado. A tua cama fica em lugar seco? 

- Fica. 

- Pois então. 

Ele devia sair convencido que ninguém nem mais nada estava contra ele. Devia se esforçar para levar uma vida normal. 

- Não sei se vou conseguir... 

- Vai. 

- Como é que você sabe? 

- Porque eu vou estar sempre atrás de ti, tchê. Te cuidando. De dia e de noite. A menor recaída na paranóia, ó... 

E o analista de Bagé fez o gesto de quem acerta um cutelaço na nuca. (VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Analista de Bagé, Porto Alegre : L&MP Editores, 1995, p. 82)

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