sexta-feira, 24 de julho de 2020

MR. MILES

Frágil como um vaso de porcelana

Depois de acompanhar a odisséia de seu velho amigo Sir Arthur Clarke rumo ao espaço, nosso insuperável viajante aproveitou a inesperada viagem ao Sri Lanka para praticar uma de suas atividades prediletas: o birdwatching. Com a ajuda de Riza Badurdeen, o melhor cicerone da ilha, dirigiu-se à Reserva Florestal de Sinharaja, área nomeada para a eleição das Sete Novas Maravilhas da Natureza. Após três dias de caminhada, observando e registrando o que chama de ordinary birds, por fim Mr. Miles foi premiado com a visão de um tordo de asas manchadas do Ceilão.

''Há décadas persigo este momento'', exultou nosso correspondente. ''Unfortunately, não consegui o foco adequado para o registro fotográfico. Mas a imagem do pássaro, for sure, está indelevelmente gravada em minha memória.''

A seguir, a carta da semana:

Olá, sr. Miles: gostaria de pedir seus conselhos para realizar uma viagem por conta própria à China para conhecer locais antigos, povão ainda não contaminado pelo mundo moderno, etc. Já aprendi inglês suficiente para manter uma boa conversação. Fernando Pompêo de Camargo, por e-mail.

''Fernando, my fellow: antes de mais nada, minhas desculpas por tardar em responder à sua consulta. Recebi ambos os e-mails (o segundo deles quite unpolished, isn''t it?), mas a confluência do acúmulo de questões com a exigüidade de espaço para respondê-las acarreta, unfortunately, inevitáveis delongas. Tenho algumas considerações sobre o seu projeto de viagem. Está cada dia mais difícil encontrar esta China que você procura. Embora ainda cuspam no chão e comam gafanhotos, os chineses vivem, nowadays, um furor capitalista semelhante ao que, décadas atrás, transformou milenares samurais japoneses em ávidos cantores de karaokê.

Existem, of course, redutos de uma China inocente nas áreas mais remotas do país. Não será fácil chegar a elas, entretanto. I''m very sorry to say, mas seu inglês não terá qualquer serventia em aldeias distantes. Eu mesmo só consegui conquistar a confiança de mestres como Huang Tsu e Xin Lai Min depois de dominar os dialetos wu e hakka. O mandarin e o cantonês, que aprendi anteriormente, não me bastaram nessa busca pela China perdida.

Mesmo assim, não foi fácil. Ao primeiro contato com um ocidental, o aldeão chinês é muito desconfiado, ainda que gentil. Conquistar-lhe a confiança é uma tarefa longa, que requer paciência, voz baixa e respeito. A chave para ganhar a sua simpatia é mostrar conhecimento por seu universo: mencionar um poeta ou artista local. Citar Confúcio, for instance. Nada disso, of course, será possível sem o domínio da língua local.

However, fellow, no ritmo em que as coisas caminham no país da Grande Muralha, é possível supor que, em poucos anos, haverá guias para levar viajantes estrangeiros ao que você chama de ''povão não contaminado''. Eles estarão, provavelmente, confinados em parques temáticos, representando disciplinadamente a linda história que um dia tiveram. Linda e - what a pity - tão frágil quanto um vaso de porcelana da dinastia Ming.''

Fonte: O Estadão

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