Relatos da ilha longínqua
Conforme prometido, nosso destemido viajante manda
noticias de Tristão da Cunha, a ilha mais remota do planeta, para onde
se dirigia na semana passada a bordo do MV Kelso, um dos poucos navios
que perfazem com (certa) regularidade os 2.805 quilômetros que separam a
Cidade do Cabo, na África do Sul, da longínqua possessão britânica. A
embarcação, de carga, leva apenas doze passageiros e mr. Miles foi um
dos três que enfrentaram as tormentas do Atlântico Sul na jornada.
Os outros eram um sacerdote (''very scared, I must say''), que
passará os próximos seis meses pregando para os tristanenses, e um
filatelista esloveno em busca dos raros selos emitidos na ilha - aliás,
segundo nosso correspondente, a principal fonte de renda de Tristão da
Cunha. Do único e recente cybercafé da ilha, que mr. Miles cisma em
chamar de ''very sad'' da Cunha (tradução livre de muito triste ou
tristão), chega-nos a correspondência desta semana:
Prezado mr. Miles: admiro a sua curiosidade por lugares distantes
mas, tendo lido sua última coluna, só posso imaginar que Tristão da
Cunha é um lugar de gente muito isolada e infeliz. Eis, com certeza, o
que explica o fato de sua população beber tanto whisky. Am I right?
Luis Maciel de C. Mota, por e-mail
''Você está certo em parte, my friend. Pelo que observei nesses
primeiros dois dias na ilha - quando tive a oportunidade de conhecer
pessoalmente 253 dos seus 269 habitantes -, a população não se revela
unhappy at all. São, como pude constatar, gente amável e, of course,
ligeiramente envergonhada. A presença de forasteiros os constrange e, ao
mesmo tempo, os diverte. Não foram poucos os que zombaram de meu
chapéu-coco, numa prova evidente de que estão desatualizados quanto à
moda vigente. Don't you agree?
Notei, as well, que não é verdade que bebem uma garrafa de scotch por
semana, conforme alardeado. São só duas ou três por mês, perhaps.
Ocorre, fellow, que a variedade de atividades disponíveis é
relativamente pequena.
No único povoado, que tem o esplêndido nome de Edinburgh of the Seven
Seas, há uma única loja e um único bar, o Albatross, que está fazendo
hora extra por minha causa. Os tristanenses preferem beber em casa,
sobretudo quando chove - nessa latitude, cerca de 300 dias por ano.
Todos eles, by the way, pertencem a apenas sete famílias diferentes: os
Glass, os Swains, os Greens, os Rogers, os Hagans, os Repettos e os
Lavarellos. Vivem com a paz que é possível no seio das famílias, if you
know what I mean.
Ontem, na companhia dos guias Gerry e Wayne, fiz o melhor programa de
Tristão: escalei o Vulcão Queen Mary, ainda ativo, embora não dê o ar
de sua (des)graça desde 1961, quando obrigou toda a população a deixar a
ilha. Curiosamente, dois anos depois da erupção, quase todos os
habitantes voltaram a esse lugar perdido. Well: se voltaram, é porque
não são tão infelizes assim. Am I right?
Happiness, my friend, é um interessante denominador comum de minhas
viagens. Não importa aonde eu vá, não importa a miséria ou a solidão que
exista. Sempre a encontro em algum canto.''
Fonte: O Estadão
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