sexta-feira, 17 de julho de 2020

MR. MILES

Relatos da ilha longínqua

Conforme prometido, nosso destemido viajante manda noticias de Tristão da Cunha, a ilha mais remota do planeta, para onde se dirigia na semana passada a bordo do MV Kelso, um dos poucos navios que perfazem com (certa) regularidade os 2.805 quilômetros que separam a Cidade do Cabo, na África do Sul, da longínqua possessão britânica. A embarcação, de carga, leva apenas doze passageiros e mr. Miles foi um dos três que enfrentaram as tormentas do Atlântico Sul na jornada.

Os outros eram um sacerdote (''very scared, I must say''), que passará os próximos seis meses pregando para os tristanenses, e um filatelista esloveno em busca dos raros selos emitidos na ilha - aliás, segundo nosso correspondente, a principal fonte de renda de Tristão da Cunha. Do único e recente cybercafé da ilha, que mr. Miles cisma em chamar de ''very sad'' da Cunha (tradução livre de muito triste ou tristão), chega-nos a correspondência desta semana:

Prezado mr. Miles: admiro a sua curiosidade por lugares distantes mas, tendo lido sua última coluna, só posso imaginar que Tristão da Cunha é um lugar de gente muito isolada e infeliz. Eis, com certeza, o que explica o fato de sua população beber tanto whisky. Am I right?
Luis Maciel de C. Mota, por e-mail

''Você está certo em parte, my friend. Pelo que observei nesses primeiros dois dias na ilha - quando tive a oportunidade de conhecer pessoalmente 253 dos seus 269 habitantes -, a população não se revela unhappy at all. São, como pude constatar, gente amável e, of course, ligeiramente envergonhada. A presença de forasteiros os constrange e, ao mesmo tempo, os diverte. Não foram poucos os que zombaram de meu chapéu-coco, numa prova evidente de que estão desatualizados quanto à moda vigente. Don't you agree?

Notei, as well, que não é verdade que bebem uma garrafa de scotch por semana, conforme alardeado. São só duas ou três por mês, perhaps. Ocorre, fellow, que a variedade de atividades disponíveis é relativamente pequena.

No único povoado, que tem o esplêndido nome de Edinburgh of the Seven Seas, há uma única loja e um único bar, o Albatross, que está fazendo hora extra por minha causa. Os tristanenses preferem beber em casa, sobretudo quando chove - nessa latitude, cerca de 300 dias por ano. Todos eles, by the way, pertencem a apenas sete famílias diferentes: os Glass, os Swains, os Greens, os Rogers, os Hagans, os Repettos e os Lavarellos. Vivem com a paz que é possível no seio das famílias, if you know what I mean.

Ontem, na companhia dos guias Gerry e Wayne, fiz o melhor programa de Tristão: escalei o Vulcão Queen Mary, ainda ativo, embora não dê o ar de sua (des)graça desde 1961, quando obrigou toda a população a deixar a ilha. Curiosamente, dois anos depois da erupção, quase todos os habitantes voltaram a esse lugar perdido. Well: se voltaram, é porque não são tão infelizes assim. Am I right?

Happiness, my friend, é um interessante denominador comum de minhas viagens. Não importa aonde eu vá, não importa a miséria ou a solidão que exista. Sempre a encontro em algum canto.''

Fonte: O Estadão

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