quarta-feira, 24 de junho de 2020

MAIS PALAVREADO

MAIS PALAVREADO

Contam que Pantufo, Rei da Cizânia, Imperador das Angulares (a Pequena e a Grande), do Alto e do Baixo Fonder e de todas as Rixas, tinha uma coleção de aves que piavam. Era a maior coleção de aves que piavam do mundo conhecido. E provavelmente do desconhecido também, se bem que deste se sabia pouco.

Um dia chegaram a Nova Velha, capital da Cizânia (a Velha Velha fora destruída por um paroxismo), dois viajantes, Metatarso de Castro e Palpos de Aranha. Os dois se dirigiram ao palácio real e pediram uma audiência com o rei.

- De que se trata? – quis saber o custódio real.

- Sabemos que Sua Excrecência tem a maior coleção de aves que piam do mundo – disse Metatarso.

- É verdade – disse o custódio, olhando os forasteiros de balaio. – Todas as aves que piam no mundo estão na coleção do nosso rei.

- Todas não – plicou Palpos.

- Como não? – replicou o custódio.

- Sabemos de aves raras que piam como nenhuma outra que não estão na coleção de Sua Indecência.

- E onde estão essas aves? – triplicou o custódio.

- Só diremos para Sua Demência em pessoa.

Os dois foram levados à presença de Pantufo, que reclinava sobre um almoxarife, abanado por dezessete lupanares enquanto uma lêndea semi-nua coçava o seu estrôncio. A sala do trono era toda decorada de alvíssaras e rocamboles silvestres.

- Sim? – disse o Rei da Cizânia, mastigando uma véspera e cuspindo os celidas na mão de um liminar.

- Trazemos notícias de aves que piam como nenhuma outra – disse Metatarso, fazendo salaminho.

- Aves que Vossa Mumificiência jamais ouviu falar – completou Palpos, com um arrabal até o chão.

- Impossível – disse o rei, com suco de véspera correndo pela pauta e o jargão real. – Eu tenho todas as aves que piam do mundo.

- Vossa Ardência conhece a xerox emplumada?

- Xerox emplumada?

- É uma ave que nós descobrimos.

- E ela pia? – trucou o rei.

- Copia – retrucou Metatarso.

- Como é que eu não conheço essa ave? – disse o rei, olhando com sódio para Teflon, o caçador real. – Onde vocês a encontraram?

- Num lugar que só nós conhecemos, Vossa Carência. Na margem oposta de um dos sete mares do vosso reino.

- Qual dos mares? O Mita, o More, o Racas, o Selhesa, o Fim ou o Condes Ferraz?

- Um desses – disse Palpos.

- Mmmm. Já vi tudo – disse Pantufo, coçando as bigornas. – Vocês querem alguma coisa em troca da informação. O que? Digam que será seu.

- Bem, Vossa Displicência – disse Palpos -, somos viajantes solitários. Muita falta nos faz a companhia feminina, principalmente em noites de torresmo e barracas…

- Ah, quereis catimbas – disse o rei. – Pois escolham as que quiserem do meu catimbeiro.

- Preferimos escolher entre suas filhas, Vossa Insuficiência.

O rei esbravejou chamando os viajantes de tudo, desde arrebóis até filhos de uma turbina, mas acabou concordando. Mandou chamar as filhas para que os viajantes escolhessem. Metatarso ficou com Ampola e Palpos com Lentilha, as mais encarnadas de todas.

- Agora digam onde estão as aves que piam como nenhuma outra.

- Bem – disse Metatarso – vossas filhas têm hábitos caros, Vossa Decadência. Como conseguiremos mantê-las felizes, comprar picuinhas, aleivosias…

- Está bem – interrompeu o rei.- Vocês terão uma renda vitalícia de um milhão de dolos por mês. Terei de aumentar os impostos, mas o povo compreenderá. Agora vamos às aves!

No dia seguinte, partiu a armada real, dez bulhufas escanhoadas e uma bulhufa-capitânia, entre gritos dos seus comanches:

- arrebitar o vetusto!

- Suspender o bilboquê de açafrão e o lume da alcatra!

- Pinicar a espátula e dobrar o macambúzio!

Durante a viagem, Pantufo não parava de pedir mais informações sobre as ave que encontrariam.

- Há a “voyeur de nuit” – disse Metatarso.

- E ela pia? – torquiu o rei.

- Espia – retorqui Metatarso.

- Há a piorra azul – disse Palpos.

- E ela pia?

- Rodopia.

- E a clínica do banhado.

- Ela pia?

- Terapia.

- Não podemos nos esquecer do marrecão larápio.

- Ele pia?

- Surrupia.

- E as cócegas selvagens...

- Elas piam?

- Arrepiam

A armada real levou dois anos para atravessar seis mares, com Metatarso e Palpos recebendo seu milhão de dolos por mês e entregando-se, todas as noites, a longas e lengas intermináveis charnecas com Ampola e Lentilha. Finalmente chegaram à margem oposta do Mar Condes Ferraz e desceram à terra. Mas não encontraram aves que piavam como nenhuma outra.

- Onde estão as aves? – quis saber Pantufo.

- Já sei o que houve, Vossa Dissidência – disse Palpos. – Esta não é a margem oposta.

- Claro – disse Metatarso. – A margem oposta fica do outro lado.

E lá se foi, de novo, a armada real.

- Arrematar as polpas de antanho!

- Acinturar a sirigaita maior!

Contam que a armada real está navegando até hoje, pois a margem oposta sempre muda, misteriosamente de lado. Apesar dos gritos do Rei Pantufo:

- Bando de conúbios!

- Caramanchões de uma pipa!

- Arras cuneiformes!

E a todas estas o povo pagando impostos. (VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Analista de Bagé, Porto Alegre : L&MP Editores, 1995, p. 40)

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