quarta-feira, 13 de maio de 2020

FARROUPILHA

Por Sérgio Jockymann

Pois, em Vila Velha, contavam essa história e, por sinal, quem andou contando pela primeira vez foi o coronel, num domingo que a mulher do Joãozinho fugiu com um agrimensor e o marido tinha querido beber veneno. O coronel foi um dos que impediu, o que "O Independente" chamou no dia seguinte de "tresloucado gesto", coisa que já naquele tempo só o vibrante semanário tinha a coragem de dizer de gestos tão desesperados. Ninguém conseguiu descobrir nenhuma razão para que o Joãozinho continuasse vivendo e nem as anedotas pornográficas do seu Aristides, conseguiram reanimar o marido enganado, mesmo porque todas elas tinham mulher no meio e no desfecho a vítima suspirava e concordava:

- Mulher não presta mesmo.

Assim, o coronel que tinha Joãozinho em muita conta, porque entre outras coisas ele fazia a contabilidade da Prefeitura, resolveu contar essa história que depois correu mundo.

- Essa é do Flores.

Pelo menos foi o que o coronel disse e portanto deve ser responsabilizado por todos os contratempos decorrentes. De qualquer modo, pondo a mão na consciência, não se vai encontrar nenhum outro governador que tivesse gostado tanto de pôquer e bendito sejam os governadores jogadores porque pelo menos só saíam fora do sério no pano verde. Mas o ilustre governador, seja lá quem for ele, jogava um pôquer muito animado com um paulista que tinha só Deus sabe quantos pés de café. O ilustre governador perdia e não era homem que encarasse uma coisa dessas com muita esportividade. Claro que poderia ter mandado dar quantos tiros quisesse no paulista, mas quem joga pôquer sabe que a graça está em ganhar na mesa. Foi assim, que numa das jogadas, o senhor governador resolveu passar um respeitável cachorro e o paulista, depois de duas piscadinhas nervosas, limpou a garganta e avisou:

- Paguei.

Contrariando todas as leis do jogo, o governador foi quem espichou o pescoço.

- O que é que o senhor tem?

O paulista abriu então um bravíssimo "full-hand" de ases com reis, que aqui ou em qualquer planeta só perde para "flush" ou para "four". O Senhor governador teve um segundo de profunda reflexão e depois se abriu num largo sorriso:

- É pouco.

E abriu as cartas na mesa.

- Farroupilha.

O paulista olhou as cartas, piscou, olhou para o governador, piscou, olhou para as cartas e olhou para o governador sem piscar:

- Farroupilha?

- Mas claro. Olha aqui, sete de paus, oito de copas, dez de ouro, valete de espada e dama de paus. Um farroupilha completo.

O paulista tornou a olhar as cartas, passou a língua pelos lábios e lembrou timidamente que não conhecia aquele jogo.

- É um jogo gaúcho, moço.

- E ganha de que?

- Ganha de tudo. Só perde para "four".

O paulista abriu as cartas com muito cuidado e pediu confirmação.

- Farroupilha?

- Farroupilha.

O paulista deu um suspiro e não discutiu. Depois dessa, a sorte do senhor governador se tornou mais amena e o jogo continuou, até que lá pelas tantas Sua Excelência fez uma aposta e o paulista respondeu:

- Paguei.

O governador com um ar muito seguro abriu as cartas em cima da mesa.

- "Full-hand" de valete com dama.

O paulista examinou o jogo e sorriu com muita satisfação.

- O senhor vai me desculpar, mas é pouco.

As sobrancelhas do governador subiram e desceram.

- Mostra o jogo, moço.

O paulista abriu as cartas em cima da mesa e desabafou:

- Farroupilha.

E foi apontando carta por carta.

- Sete de paus, oito de copas, dez de ouro, valete de espadas e dama de paus.

Deu um piparote nas cartas e completou:

- Há duas horas que ando atrás de um farroupilha e não havia jeito.

Foi então que o senhor governador mostrou quando merecia o posto e a confiança dos riograndenses. Balançou a cabeça com o ar mais penalizado do mundo e avisou:

- Foi pena, moço. Eu me esqueci de lhe avisar.

- Avisar de que, governador?

O governador suspirou compungido.

- Farroupilha, moço, só vale um em cada noite.

E recolheu as fichas com muita dignidade. E foi nesse ponto da história que o Joãoznho começou a rir e cinco minutos depois concordou que tinha se livrado de uma boa droga e propôs uma cervejada na casa da Zoé. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 136)

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