quarta-feira, 20 de maio de 2020

A MORAL

Por Sérgio Jockymann

Pois, houve uma época em que Vila Velha teve um juiz muito rigoroso, o doutor Flodoaldo de Andrade, que usava um bigode muito sério e era casado com a dona Delmira Gomes de Andrade e morava num palacete no outro lado da praça. O doutor Flodoaldo já entrou em Vila Velha de cara fechada e depois de ter dado dois passeios pela praça, se espalhou o boato que ele usava um colete de aço para manter a espinha em pé. De bom mesmo ele só tinha a mulher, que andava num passinho miúdo e tinha uma boca tão vermelha, que não havia menino de mais de doze anos que não se lembrasse dela quando fechava os olhos. Até o coronel, que andava muito bem servido com a mulata Maria, quando via passar a dona Delmira, tinha uma tosse seca e curta e uma esperança que um dia alguém arrebentasse com a cabeça do juiz, para que houvesse mais uma viúva no mundo.

O douto Flodoaldo já entrou na cidade implicando com o cinema e baixou uma portaria proibindo menor de quinze anos de ir ao cinema de noite, pelo que recebeu o elogio de todos os pais e um palavrão daquele tamanho, escrito a giz na porta do palacete. Depois disso, o doutor Flodoaldo também resolveu regular a entrada de menores nos bailes e proibiu que tocasse jazz-band na casa da Zoé, por causa do barulho. Ja nesse ponto, o coronel começou a sentir um tremor no olho sempre que passava pelo juiz e comentou que mais cedo ou mais tarde, o homem fazia uma bobagem. Uma semana depois disso, o coronel foi passar uma semana na fazenda e o doutor Flodoaldo fez a bobagem.

Primeiro, é preciso explicar que Vila Velha só assistia teatro de revista uma vez na vida e outra na morte, porque não havia empresário com coragem suficiente para se meter num lugar como aquele. Uma vez por ano, aparecia um grupinho de Porto Alegre, com um mágico, duas gordas e uma loira magra, que davam um espetáculo no Odeon e iam embora no dia seguinte. Mas naquele ano, aconteceu que uma companhia carioca caiu nas mãos de um vigarista e quando deu pela coisa, estava no mato sem cachorro. Para garantir o pão nosso, começaram a dar espetáculos naquela zona, até que caíram em Vila Velha, onde foram parar no Odeon. A atração máxima da companhia era Lolita, uma coitadinha muito magra, que dançava uma rumba com as pernas de fora. O Gaspar pintou um cartaz da menina com uma rosa na boca e expôs na frente do cinema.

Era a primeira vez que alguém se metia a dançar a rumba em Vila Velha e também a primeira vez que uma mulher, artista ou não, se metia a mostrar as pernas acima do joelho. Pelo menos em público. Por isso, ou pela rumba, a verdade é que o cinema ficou lotado. Tão lotado, que o Gaspar teve que pedir oitenta cadeiras para o Clube, para pôr no corredor. O espetáculo começou e meia hora depois, Lolita apareceu numa fervilhação danada, dançando Siboney. O Odeon veio abaixo e quem viu diz que a Lolita teve que dançar uma hora inteira, para que o público se acalmasse. Naquele entusiasmo todo, ninguém deu pelo doutor Flodoaldo, que depois dos primeiros compassos, segurou o braço de dona Delmira e saiu do cinema.

No dia seguinte, veio a bomba: em defesa da moral e dos bons costumes de nossa terra, o doutor Flodoaldo suspendia o Odeon por uma semana. O Gaspar achou que era brincadeira e foi falar com o juiz, que olhou o coitado de alto a baixo e disse:

- O senhor é um instrumento de corrupção dos costumes.

O Gaspar caiu o queixo e só foi fechar a boca no meio da praça, quando encontrou a Zoé e contou tudo.

- O homem é maluco.

A Zoé refletiu sobre o caso e deu um conselho:

- Vai procurar o coronel.

O Gaspar foi. Começou lembrando ao coronel que nunca tinha cobrado entrada de ninguém da família e depois contou a história.

- O que é que eu faço, coronel?

- Deixa que eu falo com o homem.

Naquela noite mesmo o coronel bateu na casa do juiz, que veio atender com um "robe de chambre" grená, que já deixou o coronel irritado.

- Em que posso lhe servir, coronel?

Geralmente o coronel sempre fazia uma voltinha antes de entrar no assunto, mas por causa do "robe" saiu do hábito.

- Que negócio é esse de suspender o Odeon?

O juiz disse que era culpa da Lolita.

- Ela dançou nua?

- Não, coronel. Mas mostrou as pernas.

- Ora, doutor, isso até mulher casada mostra sentando de mau jeito.

Foi aí que o juiz resolveu se dar importância.

- Coronel, não é pelas pernas, é pela moral. É pelos pensamentos obscenos que as pernas provocaram na platéia.

- Mas isso é motivo de suspensão?

- Evidentemente.

O coronel teve uma tosse muito perigosa, agradeceu e saiu. Naquela madrugada, chamou o delegado, que era gente de confiança e os dois estiveram vendo a lei. Na manhã seguinte, quando o juiz já ia saindo de casa, recebeu uma comunicação. Leu, ficou vermelho, depois ficou pálido, depois ficou vermelho de novo. Saiu que era um foguete para a casa do coronel.

- Que significa isso?

O coronel largou o mate, deu um suspiro e explicou:

- Sua mulher, a dona Delmira, está suspensa de andar na rua por uma semana.

- Posso saber porque?

- Pode. É pelos pensamentos obscenos que ela provoca nos homens cada vez que passa na praça.

O juiz já ia abrir a boca, quando o coronel completou:

- E não diga que é bobagem, senão ela fica viúva. A lei aqui é igual para todos. E se pensamento vale para a Lolita, vale também para a sua mulher.

No dia seguinte, o juiz revogou a suspensão e pediu transferência da cidade. E segundo o coronel aquilo foi uma pena, porque o pessoal ia sentir muita falta de dona Delmira. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 140)

Nenhum comentário:

Postar um comentário