sexta-feira, 3 de abril de 2020

MR. MILES



 A SÍNDROME DO DESEMBARQUE

Nosso impagável correspondente britânico manda dizer que, aproveitando a homenagem recebida na Moldávia, decidiu dar uma esticada até a cidade de Plovdiv, na Bulgária, para rever seu velho amigo Niko Volorov, que ganhava a vida como engolidor de fogo na Trafalgar Square, em Londres. Volorov, ainda forte como um touro apesar de seus 98 anos de idade, disse a mr. Miles que já não pratica a antiga profissão. “Agora eu fico com o álcool inteiro para mim”, brandiu, às gargalhadas. A seguir, a correspondência da semana: 

Querido mr. Miles: o senhor já ouviu falar em trauma da chegada? Eu sofro disso e tenho muitas amigas com o mesmo problema. A gente chega ao lugar sonhado e a primeira impressão é, quase sempre, a pior possível.
Madalena Seleme Araujo, por e-mail

"Well, my dear: o trauma da chegada, também conhecido como Decepção Crônica do Desembarque ou Síndrome do Aeroporto, conforme descrito pelo professor Hull van Breckeren, titular da cadeira de Psicoturismologia da Universidade de Antuérpia, é um mal que aflige milhões de viajantes, but fortunately quase sempre curável e de curta duração.

Trata-se – peço licença de tipificá-lo para os demais leitores – de um sentimento que é híbrido de cansaço, humilhação e desnorteamento. Suscetível, geralmente, a quem desembarca em aeroportos colossais ao redor do mundo, ainda mais se for pela primeira vez.

O fenômeno ocorre em terminais como os de Los Angeles, Nova York, Chicago, Londres, Hong Kong, Cingapura, Tóquio, Nova Délhi, Bangcoc e centenas de outros que não vale a pena mencionar. Ou o de Frankfurt, com tantas conexões que, certa vez, o iluminado jornalista escocês Macdenberg o definiu como ‘o aeroporto em que Jesus Cristo desembarcaria caso decidisse reaparecer por aqui’.

Vamos aos fatos: o cansaço, of course, é inerente aos que fazem viagens transcontinentais, sobretudo àqueles maltratados passageiros do que se convencionou chamar classe turística ou econômica – embora não exerça qualquer atração e custe, via de regra, uma fortuna. Estou seguro, dear Madalena, que a única força capaz de fazer uma pessoa suportar (e pagar) por essa via-crúcis é o incomparável prazer de chegar a um lugar longamente almejado.

Pois bem: alie-se ao cansaço a humilhação. Sem o intuito de generalizar, para evitar cometer injustiças, a primeira impressão que muitos viajantes carregam de seu sonhado destino é uma longa fila para a inspeção dos passaportes, que vem, frequently, acompanhada da inevitável vontade de fazer... I beg your pardon... um xixi há muito contido e de um olhar absolutamente inamistoso do carimbador de plantão, que faz questão de insinuar que você não é bem-vindo.

A essa altura, my God, o passageiro já está sentindo a enfermidade, com o sistema imunológico abalado e a autoestima em queda acentuada. As esteiras de bagagem, however, ainda estão longínquas. Muitas vezes, é preciso seguir múltiplos códigos de comunicação – terminal B, setor A, esteira 3 – e, sometimes, até descobrir a necessidade de embarcar em um trem antes de chegar às malas. Se elas estiverem lá, os sintomas começam a diminuir.

Até que, depois da alfândega, quando passageiros, mesmo os velhos ou fracos, são obrigados a erguer malas colossais e colocá-las na esteira do raio X, as pessoas finalmente baixam a guarda. Combalidas e dispostas a convalescer do trauma da chegada, elas se entregam ao primeiro sujeito sorridente que lhes oferece um táxi e... centenas de euros (ou dólares) mais tarde, chegam finalmente aos hotéis que reservaram.

Well, darling, eis um diagnóstico de sua enfermidade. Mas não se deixe derrotar. Uma boa noite de sono depois, ao caminhar pelo calçamento que tantas vezes você já percorreu nos sonhos, o trauma terá passado. E, mesmo que você volte a se lembrar dele em uma próxima ocasião, aposto que continuará viajando. Am I right?”

Fonte: O Estadão

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