quarta-feira, 25 de março de 2020

PAVIO

Por Sérgio Jockymann

Pois, basta olhar um touro para se saber que não há nada dentro daquela cabeça. Tanto é verdade, que o valor de um bicho desses está justamente quase na outra extremidade. E foi justamente após uma longa e cuidadosa olhada na parte em questão de um touro do major Aparício, que seu Feliciano decidiu comprar o bicho. Pagou trinta contos, o que deu assunto suficiente para Vila Velha perder o sono e não faltou até peregrinação para examinar as qualidades do bicho. Ha, sim, era um lindo touro. Desses com jeito grave de desembargador aposentado. Cada vez que parava de ruminar e derramava um olhar pela assistência, todo mundo continha a respiração aguardando uma citação em latim. Isso punha o seu Feliciano nas nuvens, porque até então ele só criava gado do tipo que todo mundo carneia, não para aproveitar a carne, mas só para não ver aquele espantalho vivo. Só o nome do bicho era uma desconsideração. Chamava-se Pavio, por força de um incidente de nascimento, quando em pleno trabalho de parto, o lampião apagou e o capataz só atinava a berrar:

- Aumenta o pavio, aumenta o pavio.

Como o peão ajudante era surdo, não entendia os berros e por fim o capataz só gritava:


- Pavio, Pavio.

O bicho que veio, já veio com nome feito. Houve uma tentativa de batizar o coitado com um nome mais sonoro, mas não adiantou porque todo mundo só perguntava:

- Como vai o Pavio?

E aí o nome pegou e o Pavio ficou.

Seu Feliciano conseguiu uma explicação medonha para o nome e até as damas, embora tapando os ouvidos, concordaram com a história. Pavio cresceu e se fez touro. Tudo sem alarde, porque era discreto. Mas os instrumentos indispensáveis para a sua atividade eram de provocar entusiasmo nos criadores, que profetizavam um futuro risonho para seu proprietário:

- Esse bicho vai pagar-se muito cedo.

Veio a primavera e após uma conferência rápida com o veterinário, seu Feliciano mandou que o Pavio fosse apresentado às futuras esposas. E aí a tragédia começou. O Pavio não apenas passeou sobranceiro pelo meio das vacas, como meteu os chifres na mais aflita. Seu Feliciano que havia convidado a família inteira para a cerimônia, ficou vermelho como um tomate e fez o sinal da cruz. Só não explodiu ali mesmo, porque a dona Dadinha acalmou:

- Tudo na vida leva tempo.

Mas no dia seguinte, a terrível cena se repetiu. E durante a semana toda, por maior que fosse a insistência das damas, o Pavio não demonstrou a menor intenção de sair do celibato. Na segunda-feira, o dr. Honório foi arrancado da cama às três da manhã e às cinco já examinou o bicho.

- E daí?

- Tá inteiro, seu Feliciano.

- Inteiro e não tem apetência?

- Vai ver que é uma fase.

Trinta dias e a fase não passava. O Honório foi chamado de incompetente, quis sacar o revólver e quase que uma desgraça se transforma em duas. Veio a família toda acalmar seu Feliciano enquanto o dr. Honório insistia:

- Competência ele tem, o que não tem é vontade.

Receitou uma mudança de ração que não produziu o menor resultado. Quando entrou o segundo mês, a cidade inteira já falava mal do bicho. Era dizer Pavio e todo mundo caía na gargalhada. No terceiro mês, seu Feliciano deu uma bofetada no filho do Antoninho do Cartório, porque o rapaz teve o atrevimento de sugerir:

- Bota o Pavio com o boi que ele se acha.

Coisas como essa abalam a alma de um homem. Seu Feliciano não dormia mais. No quarto mês, trouxe lá das barrancas do Uruguai o João Capetinha, que era benzedor afamado. O homem veio, deu três voltas ao redor do Pavio e disse que era olho grande.

- Tem inveja nesse bicho, seu Feliciano.

Pendurou um sapo morto no pescoço do Pavio, que nem por isso mudou de atitude. Aí veio a Siá Chica, que misturou umas porcarias e passou o resultado em certas partes do touro. O Pavio ficou meio inquieto, mas foi inquietação de solteirão dessas que a gente vence sem companhia. Nesta altura um castelhado disse que vaca branca com pinta preta na testa era bater e valer. O Pavio deu uma chifrada na que encontraram. Seu Feliciano arrancava os cabelos e já começava a sofrer do mesmo mal.

- Raio de bicho cafajeste.

E começou a ter raiva do Pavio. Todo o dia, ia para a frente do touro e xingava o coitado com o que havia de pior. Também não resolveu, mas pelo menos aliviou um pouco a pressão da casa. Até que um ano depois, seu Feliciano tomou uma resolução drástica. Entrou na estrebaria, caminhou direto para o bicho, estendeu o dedo e jurou:

- Tu vai ser o primeiro boi de trinta contos.

Dizem até hoje que o Pavio não dormiu aquela noite e que as duas da manhã mugiu quinze minutos sem parar. Às quatro, seu Feliciano acordou e mandou preparar os instrumentos.

- Esse serviço eu quero fazer pessoalmente.

Cinco horas o Pavio deixou de mastigar, olhou para os lados e sem mais nem menos deu um urro pavoroso. Foi urrar e sair num arranco, levando metade da parede com ele. Ficou um segundo para pegar a orientação certa e se abalou pelo campo. Seu Feliciano que vinha saindo de casa, deu um berro ainda maior.

- Pega esse sem vergonha.

E saiu a pé atrás do Pavio que desabalava pela coxilha. Quando seu Feliciano, mais morto que vivo, chegou no topo e olhou para baixo, se atirou no chão e começou a rolar de um lado para outro. O pessoal que chegou ainda deu com ele rindo e rolando, rolando e rindo. Lá embaixo o Pavio cumpria a sua missão. E embora o dr. Honório negue de pés juntos que isso seja possível, a verdade é que dali para frente, sempre que seu Feliciano chegava na estrebaria dizia:

- Sai dessa moleza se não tu vira boi.

O Pavio bufava e saía correndo pela porta atrás de serviço. E só por isso, seu Feliciano sempre que tinha visita, apontava para o Pavio e dizia:

- Esse bicho é um Ruy Barbosa.

E Pavio tomava ar de sério como se fosse confirmar com uma citação latina. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 108)

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