O OLHO
Por Sérgio Jockymann
Pois, a Tirana
está morta e nesta altura não há mais como a ciência descobrir o que havia com
ela. O fato é que todos os contemporâneos juram que haviam e até hoje em Vila
Velha, quando um estancieiro se lembra dela, faz o sinal da cruz. Também
ninguém sabe como começou. O que todo mundo sabe é que, um dia, a Tirana botou
o olho no touro do major Matias e acabou com a descendência dele. Há uns que
dizem que o touro do major Matias foi o primeiro, outros dizem que foi o
segundo e ainda existe um grupo que jura que foi o terceiro. Numa coisa todos
concordam: que foi somente porque a Tirana descobriu a potência do seu olho. E
dizem que ela olhou para o touro do major Matias de propósito porque ele havia
derrubado sua tapera. Ela olhou e olhou comprido, como fazia sempre nesses
casos, cuspiu para o lado e disse:
Não teve
mesmo. A Tirana, junto com sua trouxinha de roupa, foi para a estância do seu
Olegário e se aboletou numa tapera que havia perto do arroio. Ficou lá duas
semanas até que o capataz deu com ela e acabou com a festa:
- Te some
daqui.
Ela apanhou a
trouxa, riu com dois dentes só e saiu a passo. Três semanas depois, no exato
momento que o seu Olegário comprava um touraço Hereford por um dinheirão, ela
apareceu, largou aquele olhar comprido que nem cobra, cuspiu para o lado e
disse:
- Pode capar
que não tem mais serventia.
Não teve
mesmo. Deram até pólvora com cachaça para o bicho, mas não adiantou nada. Foi
aí que a fama da Tirana cresceu e ela ficou mais abusada que louca. Nem bem o
seu Aristides havia comprado um touro Devon, ela entrou na estância e avisou
que ia ocupar uma tapera perto da invernada. Seu Aristides, que era um
positivista de mão cheia e portanto absolutamente contrário a essas
manifestações supersticiosas, debicou e disse que não podia.
- Vai arrastar
teus tamancos longe daqui, Tirana.
Tirana
caminhou desaforadamente até o curral, onde o touro mascava milho, olhou primeiro para o Seu Aristides e depois
espichou aquele famoso olhar. Seu Aristides riu, mas o touro se matou de
cansaço e não conseguiu um só maldito descendente. Nesta altura, a Tirana
morava onde queria e ninguém se metia com a vida dela. Foi então que naquela
cachola sem parafuso, nasceu a ideia de fazer uma casa de material com porta e
janela, como se ela não fosse doida nem pestilenta. Desenhou a casa num pedaço
de papel e levou para o major Otacílio:
- Me dê uma
igual.
O major
Otacílio chegou a levantar o rabo de tatu, mas aí pensou num touro que havia
comprado e desistiu. Olhou o desenho e saiu pela tangente:
- Tu merecia
uma casa melhor, Tirana. Quem sabe tu bate lá na Associação de Criadores?
A Tirana achou
a ideia boa e saiu, enquanto o major Otacílio se babava de tanto rir, pensando
que a maluca andaria nem bem uma légua e esqueceria de tudo. Só parou de rir
quando a Tirana entrou sala a dentro e pegou todos os destacados pecuaristas de
Vila Velha de surpresa. Todo mundo prendeu a respiração, enquanto ela punha na
mesa um desenho bem mais complicado que o primeiro e dizia:
- Tem que tá pronta
antes do inverno.
O coronel
perguntou quem tinha sido o besta a sugerir aquela visita e o major Otacíio
teve que confessar, porque a Tirana estava com os olhos enfiados nele. O
coronel bufou três vezes e concordou:
- Vai ser
construída. O Otacílio paga a metade.
E construíram
a casa. Só que nem bem ela ficou pronta, a Tirana exigiu uma pensão. A
Associação discutiu o problema durante uma semana e só aprovou o projeto,
depois que a Tirana acabou com a carreira dos touros dos dissidentes. Desde
então, ficou empregada da Associação dos Criadores e, justiça seja feita, uma
empregada bem modesta. Mas aí apareceu um paulista carregando uma beleza de
touro da Argentina para Sorocaba e quando soube da história, chegou a rebentar
o cinto de tanto rir. No dia seguinte, declarou no Café que a miolo mole da
Tirana tinha mais juízo na cabeça do que todos os criadores de Vila Velha. O
Clarimundo pediu licença ao coronel para fazer uma viúva paulista, mas o homem
não deixou.
- Ele merece o
pior.
Mandou chamar
a Tirana e contou tudo timtim por timtim, concluindo emocionado:
É o prestígio
da cidade que tá em jogo, Tirana velha.
A Tirana, que
nesta altura, respeitava muito o próprio prestígio, concordou e foi até o
caminhão do paulista. O Clarimundo levantou a lona e ela modorrou por cinco
minutos aquele olhar pegajoso, enquanto o paulista se revirava de rir e dizia:
- Olha à
vontade, maluca.
Jesus, Maria e
José que depois de cinco minutos daquele olhar desgraçado, o touro fraquejou,
teve uma espécie de soluço e bobeou para o lado. O paulista mudou de cor e
mandou chamar o veterinário que examinou o bicho de cabo a rabo sem encontrar
nada. O paulista não se conformou e mandou buscar uma vaca. O touro nem olhou
para a coitada Aí, já em desespero, o paulista pediu licença para soltar o
animal na invernada do coronel. Ao meio-dia, tiveram que arrancar o revólver da
mão dele, porque o infeliz queria dar um tiro nos miolos. O coronel perguntou o
que havia e o Clarimundo, pedindo desculpas às senhoras, revelou o segredo:
- O Coronel, o
bicho não é homem.
No dia
seguinte, a Associação dos Criadores aumentou a Tirana e o coronel mandou
avisar que se ela olhasse mais de um minuto para um touro, seria abatida no
local sem julgamento. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila
Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 90)
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