Em 11 de setembro, nas savanas do Quênia
Mr. Miles* - O Estado de S.Paulo
Sem preâmbulos ou considerações sobre seu atual paradeiro, nosso correspondente enviou a resposta à pergunta da semana:
Querido mr. Miles: há 12 anos, no exato dia em que lhe escrevo este
e-mail, eu estava em Montreal, no Canadá, e acompanhei, sem acreditar no
que via, o ataque múltiplo aos Estados Unidos com a icônica imagem da
queda das Torres Gêmeas do World Trade Center. Fiquei preso na cidade
por alguns dias porque todos os voos foram cancelados. Lembro-me de ter
ligado à minha mulher, pedindo a ela que fosse a um supermercado em São
Paulo e fizesse um grande estoque de provisões. Minha sensação foi a de
que o mundo nunca mais seria o mesmo e acautelei-me para que pudesse ser
um dos sobreviventes. De fato, o mundo mudou muito desde então - mas
não tão catastroficamente quanto eu pensava. E o senhor: como passou
essa data e como acha que ela afetou nosso planeta? Miguel Ortiz de
Almeida, por e-mail
"Well, dear Mike: muito bem formulada a sua pergunta. Creio que cada
um dos meus leitores se lembra, perfectly, do que fazia naquele fatídico
11 de setembro. E, believe me: ouvi as mais variadas reações. Pessoas
que levaram anos para recuperar a confiança e, therefore, resolveram
abrigar-se na teórica segurança de sua vida cotidiana. Outras, I must
say, que fizeram o contrário: diante da fragilidade de tudo (e tudo,
naquele caso, incluía a maior potência militar do mundo), largaram seus
afazeres cotidianos e ousaram provar novas formas de viver. Com mais
intensidade e mais riscos, de modo a usufruir de cada momento como nunca
mais (sorry, my dear Vinicius, mas era necessário, nesse caso, que eu o
plagiasse).
O pior de tudo é que muitos não se curaram. Até hoje há gente que
abandonou o prazer de viajar. Ouso dizer que esse ato de conhecer o
próprio planeta - dar-se ao direito de esmiuçá-lo e senti-lo como se faz
com as flores do próprio jardim -, foi a vítima mais inocente daquela
ignomínia.
Eu me lembro de Paul - é como se o visse agora na minha frente. Ele
era o motorista do carro que me levava da reserva de Masai Mara, no
Quênia, para a capital Nairóbi, de onde eu retornaria a Londres. Entre
longos chiados e interferências que assolavam o rádio de sua Land Rover,
ouvimos uma longínqua transmissão relatando o inenarrável. A cada frase
que escutávamos, eu me lembrava, atônito, de mais e mais amigos que
tinha (e, thank God, ainda tenho) em Nova York. A imensidão do fato
impedia-me, I must say, de ter uma visão ampla sobre as consequências
daqueles atentados. Confesso que meu raciocínio era tacanho e confuso.
Não pensei em aeroportos fechados, não supus que o mundo do viajante
iria se tornar o inferno de burocracia e procedimentos de segurança em
que se transformou. Não imaginei, my God, que nunca mais poderia levar
meu cantil de uísque para o interior de uma aeronave.
Yes, Michael, o mundo piorou desde aquele 11 de setembro, por conta
de seres sedentários que defendem seus valores até a morte e jamais
tentam entender razões e valores de outros, mas só vim a entender essa
lógica nefasta muito tempo depois. Naquele dia, my friend, eu estava
anestesiado. E só mais tarde percebi que Paul estava calado (o que era
incomum) e chorava. O carro percorria a savana; antílopes, zebras e gnus
pastavam indiferentes. Foi quando Paul, balbuciante, fez a pergunta
mais avassaladora do dia: 'Como vou alimentar meus filhos agora, mr.
Miles?'
Eu não soube responder. Mas entendi que Nova York, o Quênia e o resto do mundo tinham se tornado um único lugar."
Fonte: O Estado de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário