Por Sérgio Jockymann
Pois, trinta nos depois se pode contar a real e verdadeira história do internamento do casal russo, que durante tantos anos foi inexplicável para Vila Velha. Há mesmo gente que até hoje aponta o fato como uma prova das crueldades que o coronel andou cometendo no mundo, o que de forma alguma representa a verdade. A verdade é que quando os Petrov apareceram em Vila Velha, o coronel até que foi muito gentil e chegou até a ouvir a história toda da fuga do velho Ivan, da Rússia, levando as joias da família debaixo do braço. Dona Sofia não falava na presença de estranhos e só balançava a cabeça confirmando as palavras do marido. Depois de contar todo seu drama, Ivan disse que vinha à Vila Velha em busca de paz e tranquilidade.
O russo
protestou dizendo que não era para ele.
- Não,
coronel, para os meus cachorros.
O Clarimundo,
que estava presente, jura que a sobrancelha do coronel chegou a tocar no alto
da testa, mas isso qualquer pessoa sabe que é impossível. A verdade, no
entanto, é que o coronel foi tomado meio de surpresa e levou bem um minuto para
respirar normalmente.
- Cachorros, o
senhor disse?
- Sim, senhor.
Andam muito nervosos.
- Quantos o
senhor tem?
- Dezoito. Mas
só um é problema.
- Só um?
- Sim, senhor.
O retardado.
A sobrancelha
do coronel deu outro salto.
- Cachorro
retardado? Como é isso?
Seu Ivan deu
um suspiro e dona Sofia deu dois.
- Uma
tragédia. O coitado, até os primeiros meses, parecia um cachorro igual aos
outros. Bonzinho, educado. Até que descobrimos a tragédia. O cachorro não
latia.
O coronel já
ia dizer que era um grande negócio ter um cachorro nessas condições, quando seu
Ivan emendou:
- Não latia,
nem sentia.
- Sentia o
que?
- Não sentia a
vida. O senhor sabe, os cachorros sentem a vida.
A sobrancelha
do coronel subiu de novo, tremeu duas vezes e depois baixou para um nível
perigoso.
- Seu Ivan, eu
já vi muito viralata que se faz de bobo e acho que isso não é tragédia nenhuma.
- Ah, mas nós
consultamos os médicos.
O coronel
emendou.
- Veterinário.
- Não, senhor,
médicos mesmo. Psiquiatras.
- Pra
cachorro, seu Ivan?
- Sim, senhor.
Eles nos deram um tratamento psicológico para o pobre queridinho.
- Queridinho é
o nome do animal?
- Não, senhor,
o nome dele é Nicolau.
- Mas isso é
nome de gente, seu Ivan.
- Todos os nossos
queridinhos têm nome de gente.
O coronel teve
que puxar a sobrancelha com o dedo, porque ela não queria baixar. Mas ficou
nisso. Tudo o que disseram depois, que o coronel maltratou os russos, é pura
conversa.
Foi só o que
houve naquele momento, o coronel foi bastante sensato para não dizer para os
russos o que pensava daquilo. A coisa de fato foi pior um mês depois, quando o
coronel resolveu visitar os russos e bateu na porta. Bateu, a porta se abriu e
apareceram os dois russos latindo. O coronel deu um salto para trás e levou a
mão no quarenta e quatro, quando seu Ivan explicou:
- Estamos
dando o exemplo para o Nicolau, coronel. Cada vez que alguém bate na porta, nós
latimos para que ele aprenda como se faz.
E foi só
depois disso que o coronel mandou os dois para o hospício. E assim mesmo
porque, conforme o Clarimundo pode testemunhar, dona Sofia, só para dar o
exemplo para o Nicolau, além de latir ainda se sacudia toda, tentando ensinar o
bicho como se sacudia o rabo. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 86)
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