quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O RETARDADO

O RETARDADO
Por Sérgio Jockymann

Pois, trinta nos depois se pode contar a real e verdadeira história do internamento do casal russo, que durante tantos anos foi inexplicável para Vila Velha. Há mesmo gente que até hoje aponta o fato como uma prova das crueldades que o coronel andou cometendo no mundo, o que de forma alguma representa a verdade. A verdade é que quando os Petrov apareceram em Vila Velha, o coronel até que foi muito gentil e chegou até a ouvir a história toda da fuga do velho Ivan, da Rússia, levando as joias da família debaixo do braço. Dona Sofia não falava na presença de estranhos e só balançava a cabeça confirmando as palavras do marido. Depois de contar todo seu drama, Ivan disse que  vinha  à Vila Velha em busca de paz e tranquilidade.
O russo protestou dizendo que não era para ele.
- Para sua senhora, então?
- Não, coronel, para os meus cachorros.
O Clarimundo, que estava presente, jura que a sobrancelha do coronel chegou a tocar no alto da testa, mas isso qualquer pessoa sabe que é impossível. A verdade, no entanto, é que o coronel foi tomado meio de surpresa e levou bem um minuto para respirar normalmente.
- Cachorros, o senhor disse?
- Sim, senhor. Andam muito nervosos.
- Quantos o senhor tem?
- Dezoito. Mas só um é problema.
- Só um?
- Sim, senhor. O retardado.
A sobrancelha do coronel deu outro salto.
- Cachorro retardado? Como é isso?
Seu Ivan deu um suspiro e dona Sofia deu dois.
- Uma tragédia. O coitado, até os primeiros meses, parecia um cachorro igual aos outros. Bonzinho, educado. Até que descobrimos a tragédia. O cachorro não latia.
O coronel já ia dizer que era um grande negócio ter um cachorro nessas condições, quando seu Ivan emendou:
- Não latia, nem sentia.
- Sentia o que?
- Não sentia a vida. O senhor sabe, os cachorros sentem a vida.
A sobrancelha do coronel subiu de novo, tremeu duas vezes e depois baixou para um nível perigoso.
- Seu Ivan, eu já vi muito viralata que se faz de bobo e acho que isso não é tragédia nenhuma.
- Ah, mas nós consultamos os médicos.
O coronel emendou.
- Veterinário.
- Não, senhor, médicos mesmo. Psiquiatras.
- Pra cachorro, seu Ivan?
- Sim, senhor. Eles nos deram um tratamento psicológico para o pobre queridinho.
- Queridinho é o nome do animal?
- Não, senhor, o nome dele é Nicolau.
- Mas isso é nome de gente, seu Ivan.
- Todos os nossos queridinhos têm nome de gente.
O coronel teve que puxar a sobrancelha com o dedo, porque ela não queria baixar. Mas ficou nisso. Tudo o que disseram depois, que o coronel maltratou os russos, é pura conversa.
Foi só o que houve naquele momento, o coronel foi bastante sensato para não dizer para os russos o que pensava daquilo. A coisa de fato foi pior um mês depois, quando o coronel resolveu visitar os russos e bateu na porta. Bateu, a porta se abriu e apareceram os dois russos latindo. O coronel deu um salto para trás e levou a mão no quarenta e quatro, quando seu Ivan explicou:
- Estamos dando o exemplo para o Nicolau, coronel. Cada vez que alguém bate na porta, nós latimos para que ele aprenda como se faz.
E foi só depois disso que o coronel mandou os dois para o hospício. E assim mesmo porque, conforme o Clarimundo pode testemunhar, dona Sofia, só para dar o exemplo para o Nicolau, além de latir ainda se sacudia toda, tentando ensinar o bicho como se sacudia o rabo. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 86)

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