sábado, 1 de fevereiro de 2020

A VIDA COMO ELA NÃO É

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, em "Casablanca", trocavam olhares; isso não ocorre mais na TV
Humphrey Bogard e Ingrid Bergman,
em "Casablanca", trocavam olhares;
isso não ocorre mais na TV
PROGRAMAS TELEVISIVOS ENSINAM COMO A VIDA NAO É
Umberto Eco


Na televisão, os casais na cama fazem uma ou mais das seguintes coisas: fazem amor, brigam ou discutem porque um deles está com dor de cabeça. Às vezes simplesmente se dão as costas sem se escutar. O que nunca parecem fazer é ler livros. Consumimos ansiosamente esses programas e depois nos queixamos de que, no mundo real, as pessoas nunca leem - já que se comportam de acordo com os modelos apresentados na televisão. Então, o que mais estamos aprendendo inconscientemente com a televisão?

O que aconteceria se um agente de polícia chegasse à sua porta e começasse a lhe fazer perguntas? Se você fosse um criminoso consumado - um mafioso com um histórico ou um assassino serial psicótico, por exemplo -, responderia com insultos e um riso de desdém, ou se atiraria ao chão e criaria uma distração fingindo um ataque epiléptico. Mas, supondo que você seja uma pessoa comum com um histórico limpo, provavelmente convidaria o policial a entrar, se colocaria educadamente diante dele e responderia a suas perguntas com calma, embora com um toque de preocupação. É assim que as conversas tendem a acontecer no mundo real.

Mas o que acontece com os programas policiais? (os quais, não creiam que sou um moralista aristocrático, sim, vejo; particularmente certos programas franceses e alemães que não incluem violência excessiva nem explosões exageradamente dramáticas.) Quando o policial faz perguntas, o cidadão sempre continua o que está fazendo. Olha pela janela, termina de preparar seu almoço, lava pratos, escova os dentes e atende ao telefone, saltando de um lado para outro de uma maneira que não parece natural. Depois de um momento, finalmente pede ao policial que vá embora porque tem muitas coisas para fazer.

Por que os diretores insistem em projetar essa ideia de que os policiais devem ser tratados como irritantes vendedores de aspirador de porta em porta? É verdade que um suspeito com maus modos desencadeia o desejo de vingança no público: faz que os telespectadores anseiem pelo momento final em que o detetive humilhado triunfa. Mas e se essa não for a única coisa que entendam? Que tal se alguns telespectadores menos inteligentes tomarem isso como parâmetro, de que deveriam tratar os policiais com desdém, acreditando que essa é simplesmente a forma como se deve fazer?

Talvez as redes que encomendam e difundem séries televisivas não se preocupem com essas coisas; afinal, se os dramas de procedimentos policiais e tribunais nos ensinaram algo, é que nem sempre há consequências para quem está em cima.

Depois, é claro, há a questão do período de atenção. Os diretores de televisão parecem ter decidido coletivamente que, se uma cena de interrogatório durar mais de um minuto, tem de haver algum movimento; algo de interesse visual. Não podem mostrar somente dois atores falando cara a cara. Por isso fazem os suspeitos se mover de um lado para outro. Mas por que um diretor não pode sustentar - e conceder aos telespectadores o benefício da dúvida de que eles também podem permanecer sentados durante seu transcurso - uma cena em que duas pessoas se olhem nos olhos por alguns minutos, especialmente se estiverem discutindo assuntos de grande interesse dramático? Porque para fazê-lo bem o diretor precisaria ter pelo menos a competência de Orson Welles, e os atores teriam que estar ao nível de Emil Jannings em "O Anjo Azul" ou Jack Nicholson em "O Iluminado", pessoas que podem controlar um close e expressar seu estado mental com um só olhar ou uma sutil curvatura da boca.

Em "Casablanca", Ingrid Bergman e Humphrey Bogart podiam falar durante muitos minutos sem que o diretor Michael Curtiz (que não era exatamente Sergei Eisenstein) se permitisse apenas uma tomada de plano médio. Mas hoje em dia, quando uma equipe de produção se vê obrigada a filmar um episódio (e às vezes mais) por semana, os produtores de televisão provavelmente não podem se permitir sequer um diretor do calibre de Curtiz. Quanto à qualidade dos atores, se se esforçarem para dar o melhor de si enquanto comem hot dogs entre golpes em um teclado de computador cenográfico - como acontece com frequência nos programas policiais alemães -, o programa leva vantagem.

Evitarei moralizar. Esses programas têm valor como diversão ligeira ou prazeres culpados. Minha preocupação é simplesmente que quem só vê televisão e nunca se incomoda em abrir um livro esquecerá - ou não descobrirá, em primeiro lugar - que em algumas histórias, e no mundo real em que elas se baseiam, as pessoas realmente se sentam quietas e olham nos olhos uma da outra. 

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Fonte: Notícias Uol

Nenhum comentário:

Postar um comentário