Humphrey Bogard e Ingrid Bergman, em "Casablanca", trocavam olhares; isso não ocorre mais na TV |
Umberto Eco
Na televisão, os casais na cama fazem uma ou mais das seguintes coisas:
fazem amor, brigam ou discutem porque um deles está com dor de cabeça.
Às vezes simplesmente se dão as costas sem se escutar. O que nunca
parecem fazer é ler livros. Consumimos ansiosamente esses programas e
depois nos queixamos de que, no mundo real, as pessoas nunca leem - já
que se comportam de acordo com os modelos apresentados na televisão.
Então, o que mais estamos aprendendo inconscientemente com a televisão?
O que aconteceria se um agente de polícia chegasse à sua porta e
começasse a lhe fazer perguntas? Se você fosse um criminoso consumado -
um mafioso com um histórico ou um assassino serial psicótico, por
exemplo -, responderia com insultos e um riso de desdém, ou se atiraria
ao chão e criaria uma distração fingindo um ataque epiléptico. Mas,
supondo que você seja uma pessoa comum com um histórico limpo,
provavelmente convidaria o policial a entrar, se colocaria educadamente
diante dele e responderia a suas perguntas com calma, embora com um
toque de preocupação. É assim que as conversas tendem a acontecer no
mundo real.
Mas o que acontece com os programas policiais? (os quais, não creiam
que sou um moralista aristocrático, sim, vejo; particularmente certos
programas franceses e alemães que não incluem violência excessiva nem
explosões exageradamente dramáticas.) Quando o policial faz perguntas, o
cidadão sempre continua o que está fazendo. Olha pela janela, termina
de preparar seu almoço, lava pratos, escova os dentes e atende ao
telefone, saltando de um lado para outro de uma maneira que não parece
natural. Depois de um momento, finalmente pede ao policial que vá embora
porque tem muitas coisas para fazer.
Por que os diretores insistem em projetar essa ideia de que os
policiais devem ser tratados como irritantes vendedores de aspirador de
porta em porta? É verdade que um suspeito com maus modos desencadeia o
desejo de vingança no público: faz que os telespectadores anseiem pelo
momento final em que o detetive humilhado triunfa. Mas e se essa não for
a única coisa que entendam? Que tal se alguns telespectadores menos
inteligentes tomarem isso como parâmetro, de que deveriam tratar os
policiais com desdém, acreditando que essa é simplesmente a forma como
se deve fazer?
Talvez as redes que encomendam e difundem séries televisivas não se
preocupem com essas coisas; afinal, se os dramas de procedimentos
policiais e tribunais nos ensinaram algo, é que nem sempre há
consequências para quem está em cima.
Depois, é claro, há a questão do período de atenção. Os diretores de
televisão parecem ter decidido coletivamente que, se uma cena de
interrogatório durar mais de um minuto, tem de haver algum movimento;
algo de interesse visual. Não podem mostrar somente dois atores falando
cara a cara. Por isso fazem os suspeitos se mover de um lado para outro.
Mas por que um diretor não pode sustentar - e conceder aos
telespectadores o benefício da dúvida de que eles também podem
permanecer sentados durante seu transcurso - uma cena em que duas
pessoas se olhem nos olhos por alguns minutos, especialmente se
estiverem discutindo assuntos de grande interesse dramático? Porque para
fazê-lo bem o diretor precisaria ter pelo menos a competência de Orson
Welles, e os atores teriam que estar ao nível de Emil Jannings em "O
Anjo Azul" ou Jack Nicholson em "O Iluminado", pessoas que podem
controlar um close e expressar seu estado mental com um só olhar ou uma
sutil curvatura da boca.
Em "Casablanca", Ingrid Bergman e Humphrey Bogart podiam falar durante
muitos minutos sem que o diretor Michael Curtiz (que não era exatamente
Sergei Eisenstein) se permitisse apenas uma tomada de plano médio. Mas
hoje em dia, quando uma equipe de produção se vê obrigada a filmar um
episódio (e às vezes mais) por semana, os produtores de televisão
provavelmente não podem se permitir sequer um diretor do calibre de
Curtiz. Quanto à qualidade dos atores, se se esforçarem para dar o
melhor de si enquanto comem hot dogs entre golpes em um teclado de
computador cenográfico - como acontece com frequência nos programas
policiais alemães -, o programa leva vantagem.
Evitarei moralizar. Esses programas têm valor como diversão ligeira ou
prazeres culpados. Minha preocupação é simplesmente que quem só vê
televisão e nunca se incomoda em abrir um livro esquecerá - ou não
descobrirá, em primeiro lugar - que em algumas histórias, e no mundo
real em que elas se baseiam, as pessoas realmente se sentam quietas e
olham nos olhos uma da outra.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Fonte: Notícias Uol
Fonte: Notícias Uol
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