CARANGUEJEIRA
Sérgio Jockymann
Pois, coitado do seu Rubinho até que era boa pessoa. Mas nascer de pai bêbado e de mãe sem vergonha é mais do que a sorte que um vivente pode aguentar. Seu Rubinho já veio com um desfastio de nascença. No princípio ainda tentou tirar o pé do barro, mas depois pegou um cansaço daquela luta e quando bateu uma peste na criação enterrou o último boi e disse para a mulher:
- Nasci pra Cristo.
Começou então a vender o campo, palmo a palmo, enquanto os filhos cresciam e a mulher minguava. Ficou cinco anos nisso, até que um dia sentou no alpendre e ficou lá bem contadinhos três sóis e três luas, sem ouvir ninguém, mergulhado num pensamento de légua e meia para dentro da desgraça. Quando acordou, pegou o mate, chamou a mulher e após um silêncio de meia hora declarou:
- Tem de haver um revertério nessa nossa vida, senão, não sei o que vai ser da piazada.
Dona Marcolina espremeu um suspiro e não disse nada, porque existem verdades que nem precisam de confirmação.
- Olhe, continuou seu Rubinho, tenho um sentimento que vai haver qualquer coisa meio diferente na minha vida.
No dia seguinte se mandou para Vila Velha e passou um mês inteiro bebendo cachaça no Café Central, com um jeito de onça esperando cabrito. Enquanto o cabrito não vinha, seu Rubinho foi fazendo amizades, metendo o nariz curtinho nas prosas do café, até que virou pessoa da casa. Já isso ia lá para o segundo mês, quando o dr. Aristides inventou de discutir aranha, porque havia corrido de uma na noite anterior. A conversa se alastrou como fogo em capim seco, até que, coroando a nojeira toda, o dr. Aristides declarou:
- Agora, não tem veneno pior do que caranguejeira.
Todas as cabeças estavam concordando, quando seu Rubinho cuspiu pelo meio dos dentes e disse que não concordava. Houve um estarrecimento geral, porque o dr. Aristides era tido e sabido como o mais bem informado do município todo, mas nem por isso seu Rubinho se intimidou. Muito pelo contrário, quando o dr. Aristides disse que ele "elaborava em engano", seu Rubinho meio que desaforadamente insistiu:
- O engano é seu, doutor. Caranguejeira morde, mas não tem veneno.
Ora, Vila Velha sentia no ar, quando a tragédia se instalava na vida. Foi seu Rubinho dizer aquilo e logo todo mundo espichou o olhar para o dr. Aristides, sabendo que a cidade estava vivendo mais um de seus grandes momentos. O dr. Aristides tomou aquele ar de enciclopédia Jackson encadernada em marroquim e com o mais puro desprezo atirou:
- Prove!
Seu Rubinho já ia escapar por um sorriso, quando também teve um súbito sentimento da gravidade do momento e para seu próprio espanto se ouviu dizer com uma voz rouca como cova de cemitério:
- Provo e aposto.
Até cachorro entrou no Café Central atrás do desfecho do confronto. O dr. Aristides mandou servir uma cerveja para todos os presentes e após o primeiro copo, quando o pessoal lambia os bigodes de espuma com a ponta da língua, tripudiou:
- Vale cem contos, seu Rubinho.
Houve gente que gemeu, seu Matias que estava louco da vida para desaguar enfiou a mão no bolso e apelou para a pressão manual a fim de não perder um segundo do duelo e o velho Riva ameaçou um enfarte, que naquele tempo se chamava angina do peito. Só seu Rubinho não falava, branco como cera, com os músculos da face esperneando de um lado para outro. Quando falou, a voz saiu primeiro como fio de navalha e, só depois de um pigarro, pegou a grossura que o momento exigia:
- Tá aceito.
O velho Riva caiu de borco e seu Matias saiu pingando pelo corredor. O resto do pessoal roncou como porco embaixo de faca. Só quem saiu voando foi o Guajuvira, o tipo mais cafajeste de capanga que já pisou na face da terra. A aposta nem estava feita e o desgraçado já pensava naquela caranguejeira medonha que vivia atrás da igreja, metida numa raiz de figueira. Saiu aos berros de "deixa-que-eu-trago", enquanto o dr. Aristides, meio intimidado pela decisão do seu Rubinho, tomava ares de protetor das famílias.
- Olhe, seu Rubinho, o senhor é maior de idade, mas não quero responsabilidade. Vou lhe pedir que assine uma declaração, dizendo que se deixou picar por livre e espontânea vontade, assumindo inteira responsabilidade pelo seu ato.
Seu Rubinho nem conseguiu falar. Fez que sim com a cabeça e ajudou a levar seu Riva para outra sala. Quando voltou, o Guajuvira despejava uma caranguejeira de palmo em cima da mesa. Foi olhar para o bicho e seu Rubinho puxou um sorriso que não conseguiu mais desfazer por mais que tentasse. Caminhou para a mesa com a cara repuxada e estendeu a mão para a desgraçada da aranha. A caranguejeira, já danada da vida com as provocações do Guajuvira, tocou os dois ferrões na polpa da mão do seu Rubinho com toda a gana que tinha. Nem mesmo assim ele deixou de sorrir. E continuou sorridente quando o sangue negro brotou dos dois furinhos. Metade da sala ficou de cabelo em pé e quando uma mosquinha de nada pousou no cabelo do seu Gustavo, ele esqueceu que estava com uma garrafa de cerveja na mão e bateu nela. Levou bem um minuto o horror geral, desfeito pelo seu Matias que deu três tiros na peçonhenta. O Guajuvira então riu daquele jeito cretino que ele tinha e anunciou:
- Uma hora e o homem morre!
Seu Rubinho balançou a cabeça cheio de superioridade e continuou a sorrir. Seu Schmidt trouxe um como d'água e pôs na frente da vítima que não aceitou. Aí bateu um medo em todo mundo que seu Rubinho morresse e ninguém mais conseguiu falar. Três horas depois, quando o Rapadura entrou e começou a dar boa tarde, levou um bofetão do Seu Matias e calou a boca. Lá pelas cinco começou a vir gente e gente até que às oito da noite não havia mais lugar no café. E seu Rubinho sentado com um sorriso nos lábios. O dr. Aristides então começou a desejar furiosamente que a vítima tivesse um desmaio e, uma hora depois, não tinha nem mais vergonha de querer que seu Rubinho caísse morto. Só que seu Rubinho continuava não apenas vivo como também sorridente.
- Tá sentindo alguma coisa?
Seu Rubinho balançou a cabeça.
- Febre?
Seu Matias tocou na testa do Rubinho e disse que estava fresquinha. Meia noite, o dr. Aristides ensaiou uma esportividade amarela e assinou o cheque.
- Pago os cem pela satisfação de ver o senhor vivo.
O café inteiro explodiu. Seu Rubinho foi abraçado, beijado, bebido e discursado. Às duas da manhã, depois de tentar meia hora, conseguiu desfazer o sorriso e disse:
- Me dão licença, mas a patroa me espera.
Foi levado em comitiva até à estância. Bateram por lá ao nascer do sol. Dona Marcolina estava de pé e quando recebeu a notícia não sabia se ria ou se chorava. Mandou servir café para todo mundo e levou o marido para o quarto. Mal fechou a porta e seu Rubinho pôs até as tripas para fora. Ela quis pedir socorro mas ele não deixou:
- Perco o dinheiro, minha filha.
Teve uma tontura e se agarrou na mulher.
- Me leva pra cama.
Ficou na metade do caminho, emborcado em cima de um pelego. Durante três dias não se mexeu, ora fervendo como uma chaleira, ora gelando como uma geada. Só voltou a si no segundo dia, quando olhou a mulher e meio num ronco de bicho disse:
- Se não morri lá, não morro mais. E não morreu mesmo. Uma semana depois estava de pé e pronto a jurar que a caranguejeira não tinha veneno. No mês seguinte, vendeu as terras e se mandou com a família para a capital com cento e poucos contos no bolso, o que era um dinheirão que não acabava mais. E nunca soube que, três anos depois, o Guajuvira fez a mesma aposta e morreu preto, de uma mistura de veneno, medo, coração fraco e cafajestice. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 44)
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