A TRAGÉDIA
Por Sérgio Jockymann
Pois, quem anda a sentar em louças, nem de longe imagina a angústia de quem sentava em madeira. Era uma segunda natureza entrar na casinha e, antes de sentar, lançar uma olhada temerosa para todas as juntas do assoalho.
E não havia pavor maior do que, no meio da operação, ouvir um rangido no madeirame. Claro que os ricos construíam casinhas luxuosas de madeira de lei, mas o tempo junto com os detritos humanos, conspirava até mesmo contra a segurança dessas fortalezas sanitárias. E como era feio falar no assunto, as casinhas iam apodrecendo sem a menor fiscalização, até que um dia vinha abaixo. A família inteira agradecia a Deus, quando uma ventania derrubava a construção, porque assim alguém havia sido poupado da maior miséria que era cair dentro da fossa. Ah, sim, não havia miséria maior. Em Vila Velha, um advogado após tão amarga experiência não resistiu e estourou os miolos. Porque por mais banhos que a vítima tomasse, permanecia sempre uma espécie de odor psicológico, que o afastava da companhia dos seus semelhantes. Ora, tudo isso era sabido e pensado por todos os habitantes de Vila Velha, mas ninguém se preocupava particularmente com o assunto, porque, como a morte, a queda na fossa sempre atingia os outros. No caso da Flavinha, a possibilidade de um desastre dessa natureza jamais passou pela sua cabeça. Ela não apenas era filha de uma família muito pernóstica como havia acabado de casar com o advogado mais promissor da região, o Murilinho.
Foi em plena lua de mel que a desgraça aconteceu. A Flavinha e o Murilinho tinham ido morar numa das propriedades da família, que tinha sido repintada e retocada, mas que lamentavelmente mantinha a casinha no estado original deixado pelos últimos ocupantes. A Flavinha planejou, sem muita convicção, instalar um sanitário moderno, dentro de casa, mas não levou a idéia avante porque a mãe achou que aquelas coisas não deviam ficar tão perto. Por isso, doze dias após o casamento, a Flávia se dirigiu à casinha. O Murilinho teve a gentileza de não perguntar aonde ela ia e, na verdade, foi tão gentil, que chegou até o ponto de disfarçar o olhar para outro lado. Isso era considerado de muito bom tom. Pelo que a Flavinha entrou tranqüilamente na casinha. Estava lá examinando as manchas da porta quando ouviu um rangido. Movida pelo instinto natural dos vila-velhenses, prontamente se pôs de pé. Mas como a situação física não permitia uma fuga muito rápida, ela estava ainda ocupada com as saias e outras peças íntimas, quando o rangido se transformou em estrondo e lá se foi ela para a mais negra das misérias.
Da sala, o Murilinho ouviu o estrondo e a primeira coisa que pensou foi em se matar. Não se deve condenar muito o pobre, porque certas desgraças no primeiro momento parecem mesmo insolúveis. No segundo seguinte, o grito da Flavinha entrou pela casa e o Murilinho teve que ir em seu socorro. Como era um rapaz muito previdente, antes de ir para o pátio, passou pela despensa, onde apanhou um rolo de corda. Quando chegou no local do acidente a cena era tristíssima. O chão da casinha havia cedido e da Flavinha só se avistava a cabeça, porque o resto estava imerso na mais infernal desgraça que pode acontecer a um ser humano. O Murilinho mais do que prontamente jogou a corda com uma instrução básica:
- Segura firme.
A Flavinha meio sufocada não entendeu e apresentou uma alternativa:
- Me dá a mão.
O Murilinho simplesmente não ouviu e teimou:
- Segura a corda.
- A mão!
- A corda!
- A mão!
- A corda!
O Murilinho foi firme na primeira discussão conjugal e por isso levou vantagem. A Flavinha apanhou a corda e foi puxada para fora. Mal se pôs de pé, tentou correr para dentro de casa, mas foi impedida por um berro do marido:
- Fica firme aí!
Ele decididamente estava senhor da situação. A Flavinha começou a gritar que queria morrer, pediu que um raio a matasse, amaldiçoou o dia que tinha nascido e o inventor das casinhas, mas nada disso adiantou. O Murilinho dava bomba no poço com muito empenho, enchendo o balde de duas latas vazias de gasolina. Veio com elas para perto da mulher e de dois metros de distância jogou o primeiro balde d’água. Aí a Flavinha percebeu a pouca dedicação do marido e começou a berrar:
- Tu não me ama!
O Murilinho berrou que amava e jogou mais um balde d’água. Nesta altura os vizinhos vieram ajudar enchendo prestimosamente latas e baldes com água. E lá ficaram os dois. A Flavinha a gritar:
- Tu não me ama!
E o Murilinho a jogar baldes d’água e a responder:
- Eu te amo!
Duas horas durou a operação, até que o Murilinho concordou que a esposa estava em condições de entrar em casa. Flavinha aí pedia um revólver aos berros e só entrou uma hora depois quando perdeu a voz. Foi posta numa tina e vigorosamente ensaboada e esfregada durante cinco horas, até que sua pele começou a murchar e sua mãe disse que ela não suportaria outra ensaboada. O Murilinho no entanto bateu pé e exigiu mais um banho com sabonete “Madeiras do Oriente”, no que foi atendido. A Flavinha, coitada, nem chorava mais. Só gemia:
- Tu não me ama, tu não me ama.
O Murilinho teve uma súbita inspiração e disse que já que ela não acreditava nele, ele iria passar uma semana na estância. Mas aí a Flavinha despertou, saltou da tina e exigiu:
- Tem que passar a noite comigo.
Todo mundo achou que era muito justo e o Murilinho foi obrigado a capitular. Mas, no dia seguinte, a Flavinha bateu na casa dos pais e disse que não queria mais saber dele. E convenceu a família inteira que tinha sido traída, quando mostrou os dois pedaços de algodão que havia tirado das narinas do Murilinho:
- O cachorro estava respirando pela boca.
E a família inteira achou que depois de obrigar a esposa a tomar dois banhos de “LÓrygan” de Coty, aquilo era mesmo uma indignidade. Pelo que o casamento foi desfeito e a Flavinha entrou para um convento. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 31)
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