O FULMINADOR
Por Sérgio Jockymann
Pois, seu Tidinho até os oitenta anos foi uma perfeita nulidade. Casou duas vezes e nas duas vezes se deixou dominar pela mulher, teve seis filhos e nos seis não teve a menor influência. Não falava, não cantava, não assobiava. Tinha só uns sorrisos que não diziam nada, mas que mesmo assim ou por isso mesmo foram ajudando sua vida. Até que morreu a segunda esposa e o filho mais velho tomou conta da estância. Um mês depois, seu Tidinho teve o primeiro sintoma de mudança, quando desceu do cavalo e avisou:
- Cansei dessa porcaria de vida. Quero ir para a vila.
Ora, o comum em Vila Velha era que as pessoas de setenta anos quisessem ir para a estância, onde como disse o finado Hortêncio, “sem nada o que fazer se pode espichar o tempo”. O filho mais velho bateu nas costas do seu Tidinho, riu e não tomou a menor providência. Na semana seguinte, no entanto, ele insistiu:
- Quero ir para a vila.
E ficou insistindo um ano inteiro, até que o filho mais velho perdeu a paciência e berrou:
- Só vai o dia que um raio me partir.
E seu Tidinho tremendo de indignação, bateu a boca desdentada e disse:
- Tomara que um raio te parta!
Foi falar e acontecer. Nem deu para ouvir o trovão. O raio pegou o filho mais velho na soleira da porta e se não o partiu em dois, o torrou por inteiro antes que o vivente pudesse gritar. Foi um berreiro só na casa. Mas seu Tidinho ficou ali parado muito surpreso e um minuto depois, com muito cuidado, tocou com a ponta da bota no defunto e só teve um comentário:
- Ora, vejam só!...
Ele se trancou no quarto. No dia seguinte, antes do defunto sair, seu Tidinho saiu de lá, cumprimentou os presentes e se desculpou:
- Eu não sabia que tinha tanta força.
Pelo que, durante três meses, Vila Velha comentou o caso, e concluiu:
- Praga de pai é um caso muito sério.
O segundo filho instalou seu Tidinho na Vila e nunca pôs o pé fora de casa em dia de temporal. Seu Tidinho deu para passear na praça e teve um súbito rejuvenescimento notado por observações meio espantosas em velhos de oitenta anos:
- Como tem mulher bonita neste mundo de Deus, barbaridade.
Ora, vai daí que de repente seu Tidinho deu para seguir, muito discretamente é claro, a viúva do finado Eleutério, que andava lá pelos quarenta, mas era muito conservada. Tão conservada que já tinha um pretendente, o boticário Alfredinho, que não gostou da história e cortou o caminho do seu Tidinho:
- Tu não me segue mais a viúva seu velho caduco.
Seu Tidinho tremeu o queixo, olhou para o céu carregado, piscou os olhinhos e cuspiu:
- Tomara que um raio te parta.
O boticário Alfredinho riu na cara dele, deu meia volta e atravessou a praça. Estava a dez metros de casa, quando foi atingido pelo raio e segundo o testemunho de vários presentes morreu olhando para seu Tidinho, que lá do meio da praça esfregava as mãos muito satisfeito. O Padre Ramão na missa de domingo disse que ninguém tinha poderes sobre os raios de Deus, mas Vila Velha inteira não acreditou. Até o coronel que era positivista, deu para cumprimentar seu Tidinho, explicando para os amigos:
- Tem muita coisa científica que o homem ainda não descobriu.
E com isso, seu Tidinho passou a merecer o maior respeito na cidade, embora nos dias de trovoada não encontrasse um só cristão no seu caminho. Ora, esse respeito todo terminou alterando seu Tidinho, que em 1932, saudou a revolução paulista com uma declaração estarrecedora:
- São Paulo tem razão. Tou com eles.
Vila Velha fervia de ardor bélico. O Corpo de Provisórios já havia desfilado pela cidade e o coronel já tinha jurado que faltava amarrar cavalo na Praça da Sé, porque no obelisco não chegava. No meio desse ardor revolucionário, que punha faíscas até nos olhos das ovelhas, seu Tidinho passeava pela cidade insistindo:
- São Paulo tem razão. Tou com eles.
O coronel se fez de surdo por dois dias até que o major Otacílio protestou que aquilo estava acabando com o moral da tropa:
- Tem índio aí já querendo voltar para casa coronel.
Só por isso o coronel chamou o delegado de polícia e ordenou:
- Dá um jeito no Tidinho.
O delegado pediu demissão do cargo imediatamente. O coronel então decidiu ceder a honra para o major Otacílio, mas ele não quis saber:
- A tropa precisa de mim.
Foram realizadas quinze reuniões até que o coronel exasperado convocou o padre Ramão:
- O assunto é religioso. Tão desmoralizando a Igreja.
O Padre Ramão aceitou o desafio e foi falar com o seu Tidinho. Explicou o problema da moral da tropa, mas seu Tidinho não se convenceu:
- Com oitenta e um anos, um homem não muda de idéia assim.
- Vão lhe prender, seu Tidinho.
- Tomara que um raio parta o coronel se me prenderem.
O Padre Ramão achou que era muito justo, deu a igreja por satisfeita e devolveu o caso ao coronel.
- Um positivista como o senhor não deve acreditar em praga.
Foi um momento histórico, porque de repente todo mundo olhou para o coronel e ficou à espera de sua decisão.
Ele piscou os olhos por três vezes, limpou a garganta e desatou o nó:
- O positivismo ensina a tolerância e como gaúcho eu respeito os adversários.
E foi assim que, durante toda a revolução constitucionalista, seu Tidinho passeou pela praça diariamente insistindo que São Paulo tinha razão e que estava com eles. E o povo de Vila Velha era tão tolerante que jamais desrespeitou a opinião do seu Tidinho. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 22)
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