UM FILHO PARA NOSSO VIAJANTE
Mr. Miles não confirma nem desmente, mas o boato de que ele tenha sido convidado pela duquesa Kate e pelo príncipe William para sugerir o nome do terceiro herdeiro da casa de Windsor continua se alastrando pelo Reino Unido. Nosso correspondente, como se sabe, é de longa data um amigo da família real e consta que esteve envolvido até no encaminhamento do namoro entre a rainha Elizabeth II e o príncipe consorte Phillip. O fato é que, em virtude do nascimento do royal baby e dos eventos ligados ao Coronation Day, o grande viajante resolveu passar uma pequena temporada em casa. Trashie, sua raposa das estepes siberianas, contudo, tem reclamado do calor inesperado que assola a capital inglesa. A seguir, a carta da semana:
Querido mr. Miles: admiro a sua vida de viajante, seus textos e seu entusiasmo de muitas décadas. Permita-me perguntar-lhe, entretanto: o senhor não acha que sua vida será incompleta sem sucessores?
Lucilene Moraes, por e-mail
"Well, my dear: eis um assunto delicado. Já tive grandes amores em minha vida. Mulheres ora doces, ora possessivas, ora ciumentas ou desapegadas, lindas paixões espalhadas pelo mundo que, mais de uma vez, levaram-me a pensar em jogar a âncora e encerrar essa vida itinerante que escolhi ao acaso, sem siso nem motivo.
However, dear Lucilene, sempre chegava o dia de partir. Podia ser uma rútila manhã que me evocasse o fulgor das geleiras, uma noite perfumada que me levasse às lavandas da Provença ou um dia suarento que me despertasse a febre dos trópicos. Fosse o que fosse, nunca houve nada ou ninguém que me fizesse deixar de partir. Até porque, in fact, eu já havia mesmo embarcado na nave de minhas divagações.
Tenho sucessores, I presume. Mais de uma vez, no momento de ganhar o mundo e deixar para trás grandes mulheres a quem fiz sofrer, tive a nítida sensação de ver em seus olhos sinais de uma gravidez que, em justa revanche, me foi ocultada. Eis uma dúvida que carregarei comigo. Tento evitar pensar nisso com dor ou arrependimento. E fantasio, sometimes, que um dia, somewhere, vou dar de frente com uma moça ou um rapaz que reconhecerei de imediato como meus sucessores, com a naturalidade que as tartarugas reencontram as praias onde nasceram para sua própria desova.
E, quando isso ocorrer - volto a devanear -, serei, apesar da ausência, o melhor dos pais, porque vou dar a ele (ou ela) todas as histórias do mundo que conheci e um imenso repertório de amigos, compadres e afilhados nos cinco continentes. Mas, mais que isso: se eu de fato encontrar o sucessor, quero transmitir-lhe essa avidez de conhecer que é o próprio mote de minha existência.
Não terei, by the way, nenhum outro valor a legar. Quem sabe minha coleção de passaportes encadernados, que, se não me engano, já ultrapassou o quadragésimo volume. Ou algumas bebidas estranhas que guardei just for fun, como uma vodca feita em Ilhéus, um rum do Turcomenistão, um vinho tinto congolês e uísques produzidos no Vietnã e em Honduras. Viajantes, my friends, não têm propriedades para deixar. Apenas reminiscências ou extravagâncias. Se eu puder encontrar o sucessor - ou quem sabe ainda produzi-lo -, será esse o meu legado. O mesmo que, com enorme alegria, sigo compartilhando com vocês."
Fonte: O Estado de S.Paulo
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