quarta-feira, 13 de novembro de 2019

A ORDEM

A ORDEM
Por Sérgio Jockymann

Pois, quando o Brasil entrou na guerra, o coronel já tinha se aposentado e entregue a Prefeitura para o dr. Aristides, que por sua vez havia entregue a sub-prefeitura de Capão Alto para o Borrachudo, seu desilustre cunhado. O Borrachudo, que na verdade se chamava Olegário, havia apanhado o apelido por culpa de uma dama, que assediada insistentemente por ele, explodiu: 

- Mais chato do que tu, só mosquito borrachudo.

No dia seguinte não existia mais Olegário. O Borrachudo estava definitivamente batizado. Não gostou muito da transformação, mas como tudo habitua neste mundo de Deus, depois de dois anos, até assinava documento com o apelido. O Borrachudo não era mau sujeito. Era apenas uma nulidade completa, dessas que já nasce e fica nulidade sem a ajuda de ninguém. Sua única virtude era ter uma irmã bonita, que casou com o dr. Aristides e levou o irmão no enxoval. Marido e cunhado nunca se deram bem e a malquerença começou já na noite de núpcias quando o Borrachudo teve a brilhante idéia de abrir o quarto nupcial para perguntar aos noivos se tudo estava bem. No momento, os noivos não estavam muito bem e dizem que o dr. Aristides levantou da cama pedindo uma espingarda aos berros, enquanto o Borrachudo muito surpreso dizia:

- Mas o que é que tem? Ela é minha irmã!

Dali por diante o dr. Aristides fez o possível e o impossível para se livrar do cunhado. Tentou inclusive alistar o Borrachudo na Marinha, o que causou um problema monumental porque o marinheiro se perdeu a caminho do mar e foi detido quando falsificava a assinatura do cunhado numa remessa bancária. Por essas e por outras, que o dr. Aristides quando assumiu a Prefeitura remeteu o Borrachudo para o Capão Alto, que ficava lá no meio do mato e só conseguia comunicação com Vila Velha nos meses de verão, porque no inverno nem jacaré podia andar na estrada.

Para felicidade geral da família, o Borrachudo casou com uma paraguaia Tati-bitati, que só sabia rir como uma desesperada de tudo que o marido falasse. Aí então o Brasil entrou na guerra e o chefe de polícia teve a magnífica idéia de prevenir as autoridades do interior, contra a quinta-coluna. O aviso oficial chegou à Delegacia de Vila Velha, que tirou várias cópias para as subdelegacias. Como Capão Alto nem brigadiano tinha, o Borrachudo recebeu a cópia e uma hora depois já se alarmou.

- Alemão não pode andar de barco nas águas territoriais brasileiras.

Despachou imediatamente um emissário ao cunhado pedindo instruções. O dr. Aristides foi apanhado em pleno almoço, jogou um prato de sopa pela janela, arrancou os cabelos, jurou que um dia mataria o cunhado e remeteu o emissário de volta com uma ordem taxativa:

- Faça o que der na telha.

O Borrachudo no dia seguinte confidenciou à paraguaia que o dr. Aristides, embora fosse seu cunhado, era um relapso.

- O país em perigo e ele não toma providência.

E decidiu imediatamente dar o exemplo. Pregou um cartaz na porta da bodega do seu Salustiano, proibindo terminantemente alemão de navegar nas águas territoriais. Desenhou embaixo um Viva o Brasil e assinou. O cartaz provocou muita discussão na bodega, porque uns insistiam que águas territoriais eram águas paradas e outros teimavam que eram águas correntes. A discussão foi decidida no domingo, quando o Borrachudo entrou na bodega armado de quarenta e quatro e avisou: 

- Preciso de um piquete para prender um espião!

Foi a bodega inteira. Tomaram a picada para o Arroio Muçum, com o Borrachudo na frente cantando o Hino Nacional. Isto é, cantando a primeira parte do Hino Nacional, porque de momento não havia ninguém que soubesse a segunda. O piquete venceu a Coxilha do Degolado e marchou ferozmente para as margens do Arroio Muçum, onde fez alto.

- Lá tá ele.

No meio do Arroio Muçum, seu Herrmann pescava tranqüilamente. O Borrachudo sacou o revólver e berrou:

- Chegue aqui!

Seu Herrmann disse que estava com um jundiá na linha, mas o Borrachudo não aceitou a desculpa.

- Chegue aqui se não atiro!

Seu Herrmann piscou várias vezes, mas como era acostumado a obedecer primeiro e perguntar depois, remou para a margem. Mal pôs os pés em terra, foi preso.

- Agora é a lei. Alemão não pode andar em água brasileira.

Seu Herrmann disse que não era alemão e o Borrachudo quase teve um ataque.

- Mas o teu desplante, alemão! Todo mundo sabe que teu avô veio da Alemanha. Tá preso.

E foi assim que, na semana seguinte, seu Herrmann foi acusado de espionagem nas águas do Arroio Muçum e enviado a Porto Alegre, onde levou exatamente um ano e dois meses para provar que só estava pescando jundiá e, assim mesmo, só conseguiu sair depois que jurou que jamais residiria a menos de cem quilômetros do mar. E para desespero do dr. Aristides, o Borrachudo recebeu uma carta de Washington, louvando o seu zelo pela defesa do continente americano. (JOCKYMANN, Sérgio. VilaVelha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 18)





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