domingo, 15 de outubro de 2017

CONTRADIÇÕES ROMANAS

CONTRADIÇÕES ROMANAS
Ruy Castro

Um grande filme italiano de 1962, "Il Sorpasso" (no Brasil, "Aquele Que Sabe Viver"), de Dino Risi, começa com Vittorio Gassman rodando de carro pelas ruas de Roma, num feriado, pela manhã, à procura de um telefone público. Precisa ligar para a namorada, com quem marcou um encontro, para dizer que vai se atrasar. Mas, àquela hora, todos os botequins estão fechados. Por causa disso, ele conhece o estudante inexperiente, interpretado por Jean-Louis Trintignant, e os dois pegam a estrada, numa viagem sem igual para o jovem.

Revi "Il Sorpasso" outro dia e ele continua fabuloso, mas duas coisas chamam agora a atenção. Primeiro, Gassman roda horas com seu Lancia Aurelia por uma Roma lindamente vazia. Em 1962, as cidades da Europa ainda mantinham uma relação orgânica com seus cidadãos. Não mais. Com as multidões de turistas que tomaram suas ruas, os moradores passaram a ter de disputar os serviços e praticar os preços pagos pelos visitantes. Não aguentam.

O outro ponto notável do filme é Gassman desesperado à procura de um telefone. Os garotos nascidos no século 21 não entenderão o problema, porque não conseguem imaginar a vida sem celular. Mas assim eram as coisas naquele tempo —os telefones públicos eram poucos e ficavam em botequins. Quando os botequins fechavam, nada de telefones.

Hoje, Roma é o palco de uma inédita contradição. Com sua história, arquitetura e lendas, atrai milhões de turistas por ano. Todos com telefone. E aí está a contradição.

Nesta extraordinária cidade, em que, pelas placas nas fachadas, descobre-se que ali moraram Anna Magnani, Alberto Moravia ou o próprio Garibaldi, esses milhões passeiam por suas ruas concentrados no visor do celular —indiferentes ao fato de que, em cada frontão ou pilastra, há um César de olhos vazados os espreitando.

Fonte: Folha de S. Paulo

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