AS CONVERSAS PRIVADAS
Leandro Karnal
Um deposto presidente da Câmara dos Deputados
colocava a mão na boca ao falar com alguém. Era uma maneira de evitar leitura
labial. As conversas privadas devem ser blindadas pelo sussurro ou barreira
física. Não sabemos o que falava, mas, pelo andar da carruagem, não seriam
salmos de louvor ao Criador. Todo diálogo reservado aguça nossa curiosidade.
Há notáveis conversas privadas em
história. Lembrarei algumas. A primeira marca o encontro entre dois líderes da
unificação italiana. De um lado, Giuseppe Garibaldi, herói de dois mundos,
guerreiro de camisa vermelha que entrara como um furacão no Sul da Itália e,
vencendo batalha após batalha, assustava o reacionário papa Pio IX. Seus ideais
eram mais republicanos do que monárquicos. Do Norte, vinha a figura majestática
da casa de Savoia, patrocinadora do movimento. Vítor Emanuel II é a coroa
piemontesa aspirando a ser monarca de toda península. São modelos conflitantes
de unidade e do que viria a ser o reino da Itália. O rei falou com Garibaldi em
Teano, região da Campânia. Há imagens do episódio, como a pintura de Pietro
Aldi no Palácio de Siena ou o óleo de Sebastiano de Albertis (com Garibaldi
sendo representado bem mais entusiasmado). O prestígio do líder dos camisas
vermelhas é enorme. Os dois falam entre si. Garibaldi entrega a liderança ao
rei e adere à política de unificação da casa de Savoia. Para o herói, o
encontro de 26 de outubro de 1860 é um divisor de águas: o abandono do ideal de
Giuseppe Mazzini, o romântico revolucionário que sonhara com uma Itália
diferente daquela que se estava unificando sob o comando do rei. O que
discutiram? Do que trataram? Nada sabemos. A literatura e o cinema podem alçar
voo. Nenhum documento dará voz ao contraditório. A falta de registro histórico
funciona como a mão que protege o sussurro ao celular.
Desçamos um pouco abaixo da linha
do Equador. San Martín é o militar libertador do Prata e do Chile, protetor do
Peru e herói da travessia dos Andes. O general tem uma conversa reservada com
Simon Bolívar. Ambos estão no auge da fama. Estamos em 26 de julho de 1822. O
Brasil ainda está ligado a Portugal e o resto da América Ibérica vive uma
insegurança em relação à independência. Bolívar era o herói libertador do
Norte. O outro, o gênio militar do Sul. Ambos carismáticos e aclamados por
muitos. Conversam bastante. O local da conversa é Guayaquil, no atual Equador.
Os projetos políticos dos dois militares são muito distintos. As personalidades
são quase perfeitamente opostas. Os dois conversam a portas fechadas, apesar
dos quadros mostrarem um encontro a céu aberto. Do que trataram? Quais foram os
argumentos? Teriam consciência de que estavam fazendo história?
Há uma escassa carta do
secretário de Bolívar, J. Perez, sobre o tema (descoberta em 2013). A
literatura não tolera tanta curiosidade e completou, com a imaginação, o
silêncio dos historiadores. Jorge Luis Borges imagina o embate entre os dois no
conto “Guayaquil”. O texto vale a pena ser lido pela beleza da narrativa e pela
percepção da presença argentina no continente.
Voltemos aos fatos históricos.
Segue-se um banquete à conversa. Bolívar faz um brinde aos dois maiores homens
da América do Sul: ele e o argentino. San Martín retribui com um brinde mais
altruísta ao fim da guerra, à organização das repúblicas no Novo Mundo e à
saúde do colega Bolívar. Logo em seguida, San Martín decide afastar-se da luta
e entregar todo o comando a Bolívar. Mais: o general platino embarca para a
França e, lá, morreria em 1848, com mais de 70 anos. Bolívar segue na política
sul-americana e morreu aos 47 anos, de tuberculose, apenas 8 anos depois de
Guayaquil.
Tal como Garibaldi, teria o
argentino decidido que um recuo era melhor? Uma das chaves da compreensão de
cada pessoa é saber como ela lida com sua vaidade. Todos somos vaidosos, sem exceção,
mas a quantidade e a relação com a vaidade são distintas em cada ser. Teria o
herói platino recuado por humildade, estratégia ou incapacidade de se sobrepor?
Seria San Martín um caso especial de humildade argentina? Nunca saberemos. Era
uma época anterior aos onipresentes gravadores em celulares.
As conversas privadas e
históricas constituem um desafio importante para o conhecimento do passado. São
fluxos de consciência que ajudariam muito para recompor a alma de cada
personagem e suas motivações... caso tivéssemos acesso a elas. A
correspondência que eventualmente tenham escrito ajuda, mas é um pouco mais
elaborada. Os latinos diziam “verba volant, scripta manent”. As palavras são
voláteis, dançam no ar e desaparecem. A escrita tem foro de permanência e
merece uma maior atenção do autor, fazendo com que a espontaneidade da fala e o
calor do momento encontrem filtros mais seguros. Nossa mania de trocar
mensagens a cada segundo pelo celular está aproximando os dois estatutos.
Atualizamos os latinos, pois a palavra em sua forma escrita também parece voar.
Há total oralidade nos textos de WhatsApp. Como o historiador do futuro lidará
com essa fonte de comunicação? Achar o celular de presidentes do Senado do
Brasil numa escavação ou arquivo daqui a 500 anos, com suas mensagens intactas,
revelaria o que sobre nosso mundo político? Seria uma nova pedra de Roseta? O
que nossos celulares iluminam sobre nós e nosso mundo? O dramático do mundo de
2017 é que aumentamos tanto a comunicação que ela corre o risco de se tornar
irrelevante. Talvez por isso a gente digite tanto: não há mais nada a dizer.
Fonte: O Estadão
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