Martha Medeiros
Durante a maior parte da
infância, dividi o quarto com meu irmão mais moço. Havia duas camas, uma cesta
de vime onde guardávamos os brinquedos e um armário pequeno. Jamais brigamos
por espaço, porém, mesmo havendo uma convivência amistosa, eu mal podia esperar
para ter um quarto só meu. Nunca fui muito otimista quanto a ter meus sonhos
realizados: fui daquelas meninas que se achavam meio esquecidas pelos deuses.
Tinha uma vida boa, com o básico sendo plenamente atendido (amor familiar,
escola, amigos), mas desconfiava que meus desejos secretos continuariam
secretos por um tempo indefinido.
Até que aos 11 anos trocamos de
endereço e eu tive, afinal, um quarto só pra mim. Impossível descrever meu
sentimento naquela primeira noite no apartamento novo, a sensação de poder
ficar sozinha comigo mesma, de poder desligar o abajur na hora que quisesse, de
colar nas paredes alguns pedaços de poemas e os pôsteres dos meus ídolos, de
escutar meus discos sem que ninguém se sentisse perturbado. Foi o início da
minha existência, valendo.
Não era apenas um local para
dormir. Era uma sala de visitas. Muita gente entrou no meu quarto, alguns
escondidos na mochila, sem que meus pais soubessem.
Os Beatles não só me visitaram:
moraram no meu quarto durante anos. Nós cinco cantávamos juntos, enquanto eu me
apaixonava por Londres sem ter noção de quão longe ficava.
Gostava também de ópera-rock,
tanto que os LPs de Jesus Cristo Superstar e Tommy não saíam do toca-discos. Eu
trancava a porta do quarto para que ninguém me surpreendesse em cena com a
trupe: o elenco inteiro dançava sobre o meu tapete.
Ganhei uma máquina de escrever e
através dela recebi outras centenas de convidados: todos os personagens e
situações que inventei. Do lado de fora, a casa escutava apenas um tlec, tlec,
tlec abafado e inofensivo, mas o barulho que minhas ideias faziam era de quem
estava dando uma festa para 500 pessoas.
Não bastasse essa bagunça, o
quarto ainda passou a ser compartilhado com Monteiro Lobato, até o fim da
infância, e mais tarde com Herman Hess, Anaïs Nin, Charles Bukowski, Fausto
Wolff, Caio Fernando Abreu e demais visitantes vindos de universos distantes do
meu, alguns até do além. Foram eles que me fizeram sonhar com histórias de amor
inventadas e que roubavam meu sono a madrugada inteira.
Nunca fui punida nas poucas vezes
em que mereci. “Vá para seu quarto e só saia de lá quando eu mandar.” Sério,
era pra ser um castigo?
Criança deve brincar na rua,
praticar esportes, ter contato com a natureza, socializar com a turma. Eu fazia
tudo isso e bastante. Mas ainda lembro a sensação de voltar à tardinha pra
casa, tirar os tênis sujos de grama úmida, tomar um banho quente, jantar e
então entrar num mundo ao mesmo tempo íntimo e megapovoado. Não, não era um
smartphone. Era um troço bem mais avançado. Imaginação.
Fonte: Facebook
Nenhum comentário:
Postar um comentário