João Gilberto Noll transformou as
margens no centro da literatura. Vai demorar muito para morrer, apesar do
falecimento nesta última quarta-feira (29/3), aos 70 anos.
Autor de dezoito livros e
premiado com cinco Jabutis, representava um dos últimos profetas de uma
linhagem intransigente, urbana, sensorial, situada entre Clarice Lispector e
Caio Fernando Abreu.
Sua escrita não era fácil, mas
era um difícil absolutamente emocionante, que celebrava o presente e
psicanalisava os medos. Objetivo na subjetividade, anti-naturalista, trazia à
tona o pasmo com o fim da estabilidade, onde não existe mais emprego e amor por
toda a vida. O que resta é sobreviver numa segunda Torre de Babel em que todos
os idiomas são um só e ninguém se entende.
Já nos anos 80 antecipou uma
forte tendência ao nomadismo, revelando o transbordamento das fronteiras
físicas com a globalização virtual.
Incisivo e polêmico, de estilo
inconfundível, destruía propositalmente a harmonia familiar e feita de
aparências em prol da sinceridade mais honesta e crua do andarilho. Ele sabia
que ninguém herdava o caminho da verdade, ninguém o recebia de mão beijada, mas
somente o descobria vivendo.
Seus personagens, raramente com
nome, perambulam pelas ruas em busca de um sentido para existir. Interessava-se
por retratar aqueles instantes em que alguém, inexplicavelmente, muda o seu
destino e abandona os laços.
Ele criou uma galeria de perdidos
irresistíveis, sábios, movidos a dúvidas e impulsionados a peregrinar por
dentro das mais graves crises de identidade. Em Berkeley em Bellagio, o
protagonista escritor passa a perder o idioma ao voltar de uma temporada
italiana e só consegue se comunicar no Brasil mediante língua inglesa ginasial.
Em Lorde, o protagonista de meia idade, mais uma vez um escritor, tenta apagar
os vestígios de sua nacionalidade brasileira, "habitar outra
carnação", em uma temporada em Londres. Em Harmada, um ex-ator se junta a
um asilo de mendigos tentando resolver o enigma do passado.
A prosa desliza voluntariosa para
ação, sem permeios ou piruetas. O romancista ultrapassou o romance de ideias em
nome de uma encenação em tempo real de desejos, inquietações e pressentimentos,
capaz de atingir o êxtase do grito e do gemido e consagrar o instante. Noll
colocou em prática a proposta de "desativar o homem", anunciada em
Canoas e Marolas, até assumir uma completa liberdade do instinto. Emerge de
suas criações o bicho-palavra, a desafiar convenções sociais e opções sexuais
pré-determinadas.
Perfeccionista, executava
parágrafos longos e descritivos, quase como uma música estática. À maneira das
composições de Philip Glass, utilizava consecutivas repetições e reduzia a
música aos seus elementos primordiais para acentuar o transe e o mergulho no inconsciente
coletivo. O ritmo, mais importante do que o tema, resgatava a sublimação da
experiência com o mundo.
Fonte: Facebook
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