sábado, 19 de fevereiro de 2022

O CARNAVAL DOS OFENDIDOS

O CARNAVAL DOS OFENDIDOS
Ruy Castro

Querem proibir que "O Teu Cabelo Não Nega", grande marchinha de 1932, seja tocada no Carnaval deste ano. Acham ofensiva a estrofe "O teu cabelo não nega, mulata/ Porque és mulata na cor/ Mas como a cor não pega, mulata/ Mulata, eu quero o teu amor". Mas o que dizer da genial estrofe seguinte? "Quem te inventou, meu pancadão/ Teve uma consagração/ A Lua, te invejando, fez careta/ Porque, mulata, tu não és deste planeta". Não é uma apaixonada declaração?

Os velhos Carnavais viviam dessa glorificação dos tipos nacionais: "Linda morena, morena/ Morena que me faz penar/ A Lua cheia que tanto brilha/ Não brilha tanto quanto o teu olhar" (1932); "Lourinha, lourinha/ Dos olhos claros de cristal/ Desta vez, em vez da moreninha/ Serás rainha do meu Carnaval" (1933); "Salve a mulata / Cor do café, a nossa grande produção" (1939). Há décadas o país canta com amor essas marchinhas e nunca se viu uma morena, loura ou mulata se ofender.

Assim como nunca se ofenderam os árabes ("Alá-la-ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô/ Mas que calor, ô, ô, ô, ô, ô, ô", 1941), carecas ("Nós, nós os carecas/ Com as mulheres somos maiorais/ Pois na hora do aperto/ É dos carecas que elas gostam mais", 1942), gagos ("Ta-tá-tá, tá na hora/ Vá-vá-vá-vale tudo agora/ Sou mó-mole pra fá-falar/ Mas sou um Pintacuda pra beijar", 1950), gays ("Olha a cabeleira do Zezé/ Será que ele é?/ Será que ele é?", 1964) ou lésbicas ("Maria Sapatão/ De dia é Maria/ De noite é João", 1980).

E nem podiam se ofender, porque —repare bem—, nas letras, essas minorias sempre levam a melhor. Não por acaso, entre seus autores, letristas e intérpretes originais, havia mulatos, árabes, carecas, gagos, gays e lésbicas.

Enxergar ofensa nas marchinhas é caso para terapia de grupo —com o ofendido no divã e um grupo de psiquiatras em volta.

Fonte: Folha de S. Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário