Martha Medeiros
Recentemente li Rimas da Vida e da Morte, do excelente Amós
Oz, que narra os delírios de um escritor que, ao participar de um sarau
literário, começa a olhar para cada desconhecido na plateia e a criar
silenciosamente uma história fictícia para cada um deles, numa inspirada viagem
mental. Lá pelas tantas, em determinado capítulo, o autor comenta algo que
sempre me fez pensar: diz ele que a gente vive até o dia em que morre a última
pessoa que lembra de nós.
Pode ser um filho, um neto, um bisneto ou um admirador, mas
enquanto essa pessoa viver, mesmo a gente já tendo morrido, viveremos através
da lembrança dele. Só quando essa pessoa morrer, a última que ainda lembra de
nós, é que morreremos em definitivo, para sempre. Estaremos tão mortos como se
nunca tivéssemos existido.
Pra minha sorte, tive poucas perdas realmente dolorosas.
Perdi um querido amigo há mais de 20 anos, e perdi uma avó que era como uma
segunda mãe. Lembro deles constantemente, sonho com eles, busco-os na minha
memória, porque é a única homenagem possível: mantê-los vivos através do que
recordo deles.
Daqui a 100 anos, ninguém mais se lembrará nem de um, nem de
outro, eles não terão mais amigos, netos ou bisnetos vivos, eles estarão
definitivamente mortos, e pensar nisso me dói como se eles fossem morrer de
novo.
Aquele que compõe músicas, faz filmes, escreve livros, bate
recordes ou é um Pelé, um Picasso, um Mozart, consegue uma imortalidade
estendida, mas, ainda assim, será sempre lembrado por sua imagem pública, não
mais a privada, não mais a lembrança da sua voz ao acordar, da risada, do bom
humor ou do mau humor, não mais daquilo que lhe personificava na intimidade.
Serão póstumos, mas não farão mais falta na vida daqueles
com quem compartilharam almoços, madrugadas, discussões, já que essas
testemunhas também não estarão mais aqui.
Alguém me disse: se você acreditasse em reencarnação, nada
disso te ocuparia a mente. De fato, não acredito, e mesmo que eu esteja
enganada, de que me serve a eternidade sem poder comprová-la? Se sou um besouro
reencarnado ou se já fui uma princesa egípcia, que diferença faz? Minha
consciência é que me guia, não minhas abstrações. Sou quem sou, sou aquela que
pode ser lembrada. Não me conforta ser uma especulação.
É provável que ainda não tenha nascido aquele que será o
último a me recordar, a rever minhas fotos, a falar bem ou mal de mim. Nem tive
netos ainda. Qual será a data de minha morte definitiva? Não será a do meu
último suspiro, e sim a do último suspiro daquele que ainda me carrega na sua
lembrança afetiva – ou no seu ódio por mim, já que o ódio igualmente mantém
nossa sobrevivência.
Cafajestes e assassinos também se mantêm vivos através
daqueles que lhes temeram um dia.
Nessa véspera de Finados, queria fazer uma homenagem a ele:
ao último ser humano a lembrar de nós, a ter saudade de nós, a recordar nosso
jeito de caminhar, de resmungar, o último a guardar os casos que ouviu sobre
nós e a reter nossa história particular.
O último a pronunciar nosso nome, a nos fazer elogios ou a
discordar de nossas ideias. O último a permitir que habitássemos sua
recordação. Bendita seja essa criatura, que ainda nos manterá vivos para muito
além da vida.
Bendita seja essa criatura, que ainda nos manterá vivos para
muito além da vida.
Fonte: Zero Hora
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