domingo, 21 de maio de 2023

INIMIGOS ÍNTIMOS

Ruy Castro
É possível ser ou continuar amigo de quem se discorda politicamente? Arthur Koestler (1905-83), húngaro, ex-comunista, autor do romance "O Zero e o Infinito", demolidoramente anti-URSS, achava que não. Albert Camus (1913-60) e Simone de Beauvoir (1908-86) achavam que sim. "A prova disso", escreveu Simone, "é que, neste momento [1946], apesar das diferenças, temos prazer em estar juntos".

Talvez Camus não tivesse tanto prazer. Quando outro amigo, o filósofo Maurice Merleau-Ponty (1908-61), então hidrofobamente pró-soviético, arrasou o romance de Koestler, Camus invadiu uma festa em Paris, chamou Merleau-Ponty de cachorro para baixo e saiu chutando os móveis. Jean-Paul Sartre (1905-80) correu atrás dele pela rua e lhe passou um tremendo sabão. Em troca, Camus virou a cara para Sartre no Café de Flore pelos meses seguintes.

O próprio Sartre, por ser existencialista, era malvisto pelos comunistas. Claro — para o existencialismo, a liberdade era tudo; para os comunistas, só existia o Partido. Até que, nos anos 50, para decepção de Merleau-Ponty, Sartre tentou conciliar as duas linhas. Merleau, já então anti-soviético e autor do monumental "A Fenomenologia da Percepção", criticou Sartre pela contradição e, pronto, os dois brigaram. Mas, em 1968, na invasão da Tchecoslováquia pela URSS, foi o próprio Sartre quem rompeu com o Partido. Só que passou a torcer por Mao Tsé-Tung.

Como se vê, essas discussões são antigas. Aqui no Brasil, não só velhos amigos têm se afastado por questões políticas como até casamentos já foram desfeitos — porque o marido é coxinha e a mulher, petralha, ou vice-versa.

Quanto a Camus, Simone, Sartre, Merleau-Ponty etc, todos morreram e, como católicos que, embora ateus, nunca deixaram de ser, foram para o céu e se sentaram à mão direita de Deus Pai.

Fonte: Folha de S.Paulo - 05/04/2019

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