O poder dos diários de viagem
Nosso solerte viajante nem contou aonde anda. Apenas pediu-nos
permissão para alongar-se na resposta de hoje, que considerou tema de seu
especial agrado. Pois ai vamos:
Querido Mr. Miles: tenho guardada comigo o diário de uma
viagem que fiz há muito anos — e que gosto de consultar. O que o senhor acha
disso? Está muito fora de moda ou de propósito?
Celina Mercúrio, por email
Well, my dear: as anotações de um diário, qualquer que ele
seja, só estarão fora de moda, in my opinion, no tempo em que os próprios dias
estiverem fora de moda. Assim como as fotografias são o registro visual de
algum fato — uma viagem, um casamento ou um simples encontro de amigos —, os
diários têm a insubstituível função de anotar coisas menos objetivas do que o
que se pode ver através de uma lente. Nas páginas de qualquer caderno de anotações
sem conotação escolar, jogamos, sem reservas, nossas impressões, nossos
pensamentos e as sensações que vivemos naquele determinado instante. It's
awsome, darling.
Não há forma mais livre e sensata de manifestar nossas
sensações, ainda que, paradoxalmente, elas sejam proibidas e insensatas. Freud
sequer existia quando as pessoas — homens, mulheres, crianças e idosos —, já se
permitiam dizer ao papel aquilo que jamais transformariam em palavras. E é
dessa franqueza ilimitada que se produz a evolução das pessoas ou, mais que
isso, o despertar das vocações e dos desejos. Meu amigo Walter Bergson foi,
certa vez, a um desses hotéis hedonistas do Caribe com o intuito de contar a
experiência para seus leitores. Não se sabe o que ocorreu durante aqueles dias,
mas o fato é que os leitores tiveram apenas informações factuais. Os amigos,
esses sim, souberam um pouco mais. Ao psiquiatra, Bergson contou quase tudo.
Mas a verdade continua escondida na mais oculta de suas cadernetas. Do you know
whati I mean?
Alguns jovens hão de argumentar que os diários tornaram-se
obsoletos com a possibilidade de registrar cada passo da viagem com um retrato
no instagram ou um comentário no twitter. Oh, my god: eles não sabem o que
dizem. Além de evidentemente mais elegante, o ato de anotar imprudências ou
refletir sobre dizidelas em páginas só suas, não carrega — como o twitter, o
instagram, os podcasts e outras dessas bobagens infernais —, a necessidade de
exposição pública que torna tudo menos legítimo e honesto.
Escrevi muitos diários durante minhas jornadas. E, como
qualquer viajante, juntei a eles ingressos hoje amarelados, cardápios de
restaurantes que já fecharam, tíquetes de atrações que jamais esqueci e, of
course, bilhetes de lindas moças que conheci pelo caminho. Mas o mais
importante, dear Celina, é que, em cada um deles, estão gravadas as impressões
que tive, os raciocínios que intui, os sabores e aromas que provei. Muitos
deles, nowadays, parecem-me estranhos — e já não combinam com o que penso e com
o que sou. Adoro, however, ver e compreender como mudei. Porque só não mudam as
pedras — e mesmo essas o tempo encarrega-se de esculpir.
A cômoda onde guardo as páginas que preenchi ao longo dos
anos já está até vergada pelo peso. Não o peso das cadernetas, do papel ou da
tinta. Mas o peso muitíssimo mais importante das pensatas, dos devaneios e dos
tresvarios. Não os troco por nada e vivo a consultá-los para me encher de
lembranças ou de ideias para estas crônicas semanais. Peço-te, therefore, que
não abandone a ideia de relatar os segundos, minutos e horas de seu dia quando
for viajar novamente. Ou mesmo se ficar em casa.
Fonte: Facebook
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