Texto de um juiz de direito de uma pequena cidade do noroeste do RS.
Abro a porta do auditório e faço o pregão: “Audiência das
16h30min. Maria e Abrelino” - grito eu com a voz já rouca.
Era a décima audiência da tarde.
A advogada, já conhecida, entra e me cumprimenta. Eu havia
revisado todos os processos. Anotei, num rascunho, o número de cada processo,
um breve resumo dos fatos e o pedido. Já passava das 17h. Pedi desculpas pelo
atraso. Duas audiências de dissolução de união estável extrapolaram o horário
da pauta: achei mais importante conciliar as partes.
Olho para a pessoa que entra na audiência e, por um breve
instante, pensei ter pegado o processo errado. A parte autora havia peticionado
informando que não se faria presente. Entretanto, no lado do réu, com a
advogada do réu, havia uma mulher. Ou melhor, uma quase-mulher (a definição foi
dela).
A advogada, vendo que eu havia me perdido, afirma:
- É essa audiência mesmo, doutor. Ela é o Abrelino.
E começa o diálogo:
- Tens algum nome social ou algum modo como gostaria de ser
chamado?
- Madona. Se o senhor quiser saber como eu gosto de ser
chamado, eu gosto de ser chamado de Madona.
- Pois bem, Dona Madona, tem uma ação aqui, de divórcio. A
senhora Maria quer se divorciar da senhora. Vocês tiveram um filho, é isso ?
- É, doutor. Eu cresci rejeitado. Todo mundo tem nojo de
mim. Eu tava cansado, queria ter uma vida digna, normal. Naquela época eu era
homem.... achei que casando eu poderia mudar. Ela me mentiu. Nosso
relacionamento durou quatro meses. Ela nunca me disse que tinha ficado grávida.
Logo a gente se separou e eu resolvi virar travesti.
- Tudo bem, Dona Madona. Eu não estou aqui para julgar o que
a senhora faz. A questão é que da relação nasceu um filho e a senhora precisa
pagar pensão.
- Pois é, doutor. Eu tenho depositado, desde 2009, cem reais
por mês. É o que consigo. Olha pra mim, eu tô até tísica. Faço no máximo três
programas por mês. Ganho uns 300, 350 reais. Eu preciso comprar um perfume pra
mim, uma roupa. Não é fácil. Se eu tivesse um emprego fixo, eu pagaria mais e
até iria brigar pela guarda do meu filho – que – aliás, a mãe dele arruma um
monte de pretexto para não me deixar ver a criança. Quando me vê, me xinga, me
insulta.
- Dona Madona, a senhora reside aonde ?
- Na rua. Eu passo a maior parte do tempo dormindo na rua.
Quando consigo fazer um programa, uso o dinheiro para dormir em algum hotel,
tomar um banho.
- Eu vou homologar essa questão incontroversa, a partir de
hoje a senhora está divorciada.
- Que máximo!
- Dona Madona, a senhora estudou ?
- Antes de virar travesti e casar eu trabalhava na
agricultura, eu cuidava dos meus pais. Estudei até a 7ª série.
- Pois é, Dona Madona, e por que a senhora não volta a
estudar?
( Ela baixa a cabeça e começa a chorar.)
- Eu tô desiludida da vida. Ninguém me dá emprego. As
pessoas tem nojo de mim.
- A senhora está sendo mal tratada aqui?
- Não. Mas eu tentei efetuar registro em outra cidade, me
roubaram os documentos, ninguém quer me atender. As pessoas tem nojo de
travesti.
- E por que a senhora não volta a estudar? Por que não faz
um curso de manicure, cabeleireira, faxineira?
- O senhor acha que alguém me daria emprego de faxineira?
Vou trabalhar em uma casa e vão dizer que eu tô junto com o dono.
- Bom. Eu lhe dei a sugestão. Estou homologando o divórcio.
A guarda do filho vai permanecer com a mãe e a visitação vai ser mantida da
forma como já foi fixada. A partir de hoje a senhora está divorciada.
Madona assina o termo e levanta-se para ir embora. Na saída,
abre a porta da sala e diz:
- Doutor, o senhor é o máximo !...
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