quarta-feira, 14 de outubro de 2020

O ANALISTA DE BAGÉ

OUTRA DO ANALISTA DE BAGÉ

Contam que o analista de Bagé, embora se declare “mais antigo que emplastro” é freudiano de usar carteirinha, não renega as novas técnicas de análise. Inclusive, inventou algumas. Segundo ele, só o que vai longe sem sair do lugar é trilho. É preciso dinamizar a análise. Não se concebe mais que o paciente fale enquanto o analista cochila. Por isto, depois de inventar a análise em grupo com gaiteiro, “pra indiada se soltá”, ele está experimentando com sessões externas ou “à la fresca” durante as quais paciente e analista saem à rua, e a análise é feita em qualquer lugar, num banco de praça, até num balcão de cafezinho.

- Ainda estou na fase anal-retentiva, doutor. Tenho esta obsessão infantil em não dar nada, nunca, a ninguém.

- Mas que cosa. Me passa o açúcar.

- Não passo.

As sessões de rua são boas para o paciente, pois ele foge da passividade um pouco humilhante do divã. (Se bem que o analista de Bagé adaptou um mecanismo de cadeira de dentista ao seu divã que, nos casos de complexo de inferioridade, vai ficando mais alto ao longo da sessão. “Controlo a altura na alpargata, e o coitadinho pensa que melhorou”.) Para o analista também é bom, porque ele pode, por exemplo, ir ao banco e dar consulta ao mesmo tempo. Mas o que tem dado resultado mesmo são as análises no campo. Dependendo do caso, o analista de Bagé leva o paciente a caminhar no parque ou subir em morro. Ele nasceu na campanha e costuma dizer que é “homem de quatro horizontes”. E quando o paciente dá sinais de estar muito angustiado pela vida urbana, analista de Bagé grita para Lindaura, sua recepcionista: “Prepara os isopor, que este é caso de piquenique”. Aliás, ele diz que é tradicionalista de botar o Paixão num bolso e o Barbosa Lessa no outro, mas que hoje em dia não se admite gaúcho autêntico sem garrafa térmica. E vão pro mato.

Foi sentado debaixo de uma figueira, mastigando um talo, que o analista de Bagé ouviu a sua paciente – “mais linda que manta de charque gordo”, como diria depois – declarar que não conseguia sentir prazer com homem algum, a não ser que houvesse a ameaça de punição. O analista de Bagé tentou manter o distanciamento clínico, mas estava batendo sol na bombacha e não deu. Olhou rapidamente em volta e avistou um relvado na forma de uma cama redonda. Deus existe, pensou, e Freud está à sua direita, anotando tudo. Sutilmente, o analista de Bagé sugeriu:

- Tira a roupa.

- Serei punida, depois?

- Mas bá.

- Como? Pelo sentimento de culpa?

- Não.

- Desenvolverei uma neurose? Meu ego, que exige a punição, combaterá meu id, que quer ser satisfeito a qualquer custo, mesmo sabendo que ter relações com meu analista, personifica o meu superego, não me causará culpa, pois posso racionalizá-las como terapia de apoio? Será esse o meu castigo?

- Não.

- Então qual?

- Urticária.

- Oba. (VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Analista de Bagé, Porto Alegre : L&MP Editores, 1995, p. 252)

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