Paulo Cesar Marques da Silva
Ser gentil no trânsito parece ser cada vez mais raro, mas as razões de boa parte dessa raridade talvez residam em um misto de medo e individualismo
No último fim de semana passei por uma experiência que confirmou uma suspeita que venho nutrindo já há algum tempo. Diferente do que ouço de muita gente por aí, em conversas despretensiosas ou em relatos de estudos sérios de comportamento, desconfio que as pessoas não estão ficando menos gentis do que eram quando estão dirigindo seus carros. Minha crença (sem qualquer base científica, assumo) é de que as pessoas têm tido cada vez menos oportunidades de demonstrar que o são.
O episódio de meu fim de semana ocorreu quando eu saía da quadra em que moro. Creio que aqui cabe uma pequena explicação para quem não está acostumado com o desenho do Plano Piloto de Brasília: quando um brasiliense fala de quadra, quase nunca está se referindo a um quarteirão, como faria o morador de qualquer outra cidade. Uma quadra de Brasília – na realidade, quadra é um apelido para superquadra – é um quadrado com uns trezentos metros de lado, servido com ruas internas que atendem aos cerca de doze a quinze blocos (edifícios) construídos em seu interior. Para quem está de carro, há apenas um ponto de conexão entre esse mini sistema viário e a via coletora, externa à quadra.
Pois bem, estava eu saindo da quadra, com as janelas do carro abertas, e parei sinalizando que dobraria à esquerda. Na tal via coletora, um outro carro, vindo da minha direita com as janelas fechadas, parou dando seta também para dobrar à esquerda e entrar na quadra – uma condição que obviamente lhe dava a preferência da manobra. Mas o carro não se mexeu quando teve oportunidade. Melhor dizendo, quando tivemos oportunidade. Depois de um tempo de impasse, a janela se abriu e a motorista, demonstrando certa irritação, gesticulou me mandando seguir. Foi minha vez, então, de gesticular um tanto impacientemente, tentando expressar que a preferência era dela, que finalmente fez a manobra. Ao passar por mim, disse-me em tom de bronca algo como “eu só estava querendo ser gentil”.
Confesso que senti um certo remorso por ter demonstrado impaciência, e uma certa frustração por não ter podido explicar a ela que, com os vidros escurecidos de sua janela erguidos, ela estava completamente invisível para mim. Assim, eu não tinha como saber o que ela me sinalizava, nem me sentia seguro para tentar qualquer comunicação, sem saber se ela me via ou como reagiria. Resta-me agora apenas a esperança de que ela leia estas linhas.
Quanto aos demais motoristas de carros com vidros escurecidos, repito que não tenho qualquer base científica em que fundamentar minhas suspeitas. Elas não passam disso mesmo, meras suspeitas a partir das coisas que vou vivendo no dia-a-dia. Mas, como não perdi a fé na humanidade, mesmo nestes tempos de culto à intolerância, sigo acreditando que a gentileza ainda predomina na relação entre as pessoas. Pena que o medo exagerado (nem sempre justificado pelas evidências) e o excesso de zelo pela privacidade no lugar errado (o espaço do trânsito é um ambiente público) acabem impedindo que a gentileza se manifeste…
Fonte: O Globo
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