sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

MR. MILES


AS MARCAS E OS ENCANTOS

Diante das árvores de Vermont, testemunhando o mais colorido dos outonos, nosso grande viajante anda inspirado. Veja, a seguir, o tom da correspondência da semana:

Dear Mr. Miles: ente todos os lugars por onde passou, qual deles o senhor diria que foi mais marcante e encantador? Thank you!

Sarah F. Albert, por e-mail

"Well, my dear: a sua pergunta é daquelas muito objetivas que, I'm afraid, conduzem a respostas vagas e acabam me levando ao perigoso território da poesia e seus derivados. Já tive a oportunidade, recently, de discorrer sobre o tema, recorrente em diversas missivas. Lugares marcantes, dear Sarah, não costumam ser o mesmo que lugares encantadores.

É fortemente marcante, for instance, visitar as ruínas de Auschwitz-Birkenau, onde nossa civilização atingiu o ápice de sua barbárie, ou conhecer de perto, os campos de refugiados na África e no Oriente Médio. É muito marcante, as well, fazer um tour pela Robben Island, perto de Capetown, lembrando, o tempo todo, que meu saudoso amigo Madiba (R. da R.: Nelson Mandela, estadista sul-africano) ficou ali detino na cela 466/64 por 26 anos, privando a humanidade de sua imensa sabedoria.

However, darling, não há encantamento nesses destinos. Sente-se, isso sim, uma necessária indignação, um remorso doloroso que, ao fim e ao cabo, pertence a todos nós, que por força da ignorância de nosso distanciamento seremos, always, cúmplices das tragédias de nossos tempos.

As you know, Sarah, pratico a arte de viajar por prazer, mas não escondo, imodestamente, que carrego em minha bagagem a mais cristalina das certezas: quanto mais nos interessamos pela vida dos outros, quanto mais conhecemos povos diferentes que, é claro, são uma extensão de nós mesmos, mais comprometidos nos sentimos uns com os outros. Veja, querida: se você tiver uma amiga de verdade em Alepo (as I do), as cenas de bombardeios naquela cidade vão doer tanto quanto se tivessem ocorrido em seu bairro.

Já sobre lugares encantadores, esqueça tudo o que até agora mencionei. Porque o encanto, my dear, é uma confluência de fatos e, nesse sentido, pode nos surpreender nos cenários mais improváveis. Até mesmo - why not? - na mais insípida das ruas de sua cidade. Você vê aquele lugar comum e sem graça pelo qual já passou tantas vezes e eis que um raio oblíquo de luz faz arder de febre uma janela. Uma revoada de andorinhas surge do nada e forma desenhos musicais alaranjados. De repente, uma porta se abre e dela sai a mais loira das crianças com uma cesta de frutas nas mãos. A luz oblíqua também doura a cena.

Pronto: está feito o momento encantador. Que pode ser em um bosque alpino, em um rio de Botsuana, um arrozal tailandês ou no deserto do Atacama.

A diferença principal, darling, é que quando a gente viaja, os momentos encantadores não são acaso; eles acontecem porque estamos a persegui-los, vamos aos mirantes onde é mais provável encontrá-los e estamos com o coração aberto para percebê-los.

Mas, se ainda assim você quer uma resposta objetiva, a primeira cena que me vem à cabeça é um amanhecer que presenciei no vulcão Rano Kau, na Ilha de Páscoa. À minha frente, a cratera de 1,6 metros de diâmetro; abaixo, 200 metros de paredes até o fundo, coberto de água e plantas. Naquele dia, refletindo o céu do Pacífico, o fundo do Ranu Kao era, in my opinion, um Atlas de todo o encantamento do planeta.

Fonte: O Estadão

Nenhum comentário:

Postar um comentário