terça-feira, 29 de dezembro de 2020

ROMANCE FORENSE

 
O promotor pingófilo
Charge de Gerson Kauer

O intimorato promotor tinha um hábito, na comarca interiorana, todos os meio-dias, de segunda a sexta - no trajeto do foro para sua casa: passava no clube local e tomava um "martelinho" - sempre liso e transparente. Era - talvez - seu único defeito - se é que de defeito se tratava.

Nos dias de júri era diferente. O agente ministerial gostava de, no entremeio de suas brilhantes manifestações, discretamente sorver alguns goles do incolor produto destilado. Era a maneira como combatia a tensão e o estresse dos julgamentos. O recipiente ficava num vão, debaixo do tampo da mesa que ocupava na sala de julgamentos.

Mas esse discreto proceder não escapou da observação de advogados, do juiz e de jurados. Para estes, o promotor já era conhecido como o "parquet pingófilo".

Para evitar constrangimentos futuros, o promotor fez um trato com o oficial de justiça e passou a levar a aguardente acondicionada em garrafas (translúcidas) de meio litro, como se fosse água mineral. O disfarce se fazia mediante a colocação de uma tampinha igual às que são usadas para fechar os recipientes de água com gás.

Assim, toda a vez que o promotor precisava molhar a garganta, fazia um sinal ao meirinho. Este postava-se próximo a um microfone, junto à mesa onde ficavam os jurados. Ali, simultaneamente ao usar o abridor de garrafas, o meirinho – de costas para o público - disfarçava um rápido assobio. E discretamente exclamava de forma onomatopéica:

- Pooh!
 

Com o ruído característico do líquido gasoso, era uma quase perfeita imitação de que estava abrindo uma garrafa de água mineral para levar ao promotor.

Quatro dos sete jurados - muito atilados e que já conheciam a história na comarca - tinham, porém, bolado a estratégia gozadora. Foi assim que o quarteto, a um só tempo, fez gestos e ruídos ensaiados -  com os dedos e com as bochechas -  justo no momento em que o oficial de justiça abria a primeira "garrafa de água mineral" naquele julgamento.

Ocorreu, então, um coro ensaiado e gesticulado:

- Pooh, pooh, pooh!...

Depois, uma risada geral.

O juiz tocou a campainha, advertiu que em caso de repetição do fato mandaria evacuar a sala e dissolveria o júri.

E tirando um papel do bolso, o magistrado fez rápida leitura de uma prece de São Francisco de Assis: "onde há ódio, que eu leve o amor; onde há ofensa, que eu leve o perdão; onde há discórdia, que eu leve a união; onde há dúvida, que eu leve a fé; onde há erro, que eu leve a verdade; onde há desespero, que eu leve a esperança; onde há tristeza, que eu leve a alegria; onde há trevas, que eu leve a luz. Afinal, é perdoando que se é perdoado".

Naquele julgamento, o promotor não tomou mais "água mineral". E - coincidência ou não - o réu foi absolvido.

Fonte: www.espacovital.com.br

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