Ruy Castro
Se você sempre
admirou aquela frase, "Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de
homem não, Deus esteja" --sim, é o começo de "Grande Sertão:
Veredas", de Guimarães Rosa--, e se imaginou reescrevendo o livro a partir
daí com suas próprias palavras, saiba que isso logo será possível. É só o
Brasil adotar a nova plataforma da Amazon, a Kindle Words, pela qual os fãs de
um livro terão o direito de imiscuir-se nele e se apoderar de seus personagens,
podendo até vender sua "criação", aliás chamada de "fan
fiction".
Para que o autor original ou seus
herdeiros não fiquem aborrecidos ou se sintam roubados, a Amazon pensou em
tudo. Por um valor xis, o autor ou herdeiros terão "licenciado" o
livro para quem quiser meter-lhe o bedelho --e esta será uma maneira de ganhar
algum dinheiro com literatura, já que, pelo que a Amazon decidiu, os royalties
dos escritores deixarão de existir. No novo mundo digital, o direito de
apropriar-se, copiar, reproduzir, parodiar e negociar textos alheios estará
assegurado.
Segundo os ideólogos dessa
pirataria, a receita de um escritor não virá mais dos livros que ele vender,
mas do que estes lhe renderão em aparições pessoais, palestras, programas de
TV, mesas-redondas na Flip e "produtos associados" --por exemplo, o
escritor só dará entrevistas usando um boné do Gatorade ou do Fosfosol, sendo
pago por isso. Autores capazes de equilibrar bolas no nariz levarão vantagem
sobre os gagos, os com língua presa ou qualquer dificuldade para falar em
público e que prefeririam ficar em casa, quietinhos, escrevendo.
Enfim, é o futuro. O mesmo que os
compositores de música popular, que não têm saúde ou disposição para fazer
shows, já estão vivendo. Se não cantarem para uma plateia ao vivo, não comerão.
Por via das dúvidas, vou começar
a treinar as bolas no nariz.
Fonte: Folha de S. Paulo - 28/08/2013
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